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De apreensão em apreensão se faz um patrimônio

Untitled (Reach out and Touch Someone), serigrafia sobre madeira de Barbara Kruger, além de integrar o conjunto de obras de arte milionárias que constitui a exposição “Apreensões e Objetos do Desejo: obras doadas pela Receita Federal ao MNBA“, também nos revela a sua condição.

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A imagem, reproduzida em menor escala no centro do quadro, revela uma mulher se olhando no espelho. Estranhamente, ela não se fita frontalmente, mas assume uma posição lateral em relação ao aparato. A situação fica ainda mais esquisita, pois a jovem moça persiste em fixar os olhos na superfície. Ora, o desvio (o imperativo de expansão do título: Reach out) toca quem? Reforça a identidade narcísica do sujeito ou a dribla?
Considerando ainda a legenda e a imagem, podemos tratar a obra como uma proposição, na esteira de Yoko Ono e Bruce Nauman. Trata-se então de uma sugestão para todos os visitantes: saiam de si e toquem alguém. Se assim é, há na obra de Kruger uma promessa de interação e de produção de alteridades, uma sugestão de troca e de relação baseada em uma aproximação entre a obra de arte e a vida cotidiana. A pergunta que fica é: a fusão artevida é possível a partir de uma obra milionária? E ainda: por que o trabalho de Kruger sintetizaria bem a exposição?

736c34ff-b8b9-4d1c-946b-76221fedc2cf As obras desta exposição foram encontradas em contêineres pela alfândega brasileira em junho de 2014. Juntas, elas estavam escondidas entre a carga de uma manicure de 75 anos, que estava retornando ao seu país natal após duas décadas trabalhando em solo norte-americano. Não se sabe ao certo o seu destino final, mas é bem provável que este acervo – avaliado em R$ 10 milhões – se encaminhasse para coleções privadas, sendo cada obra o reflexo narcísico de seu comprador.
Desde que foram apreendidas, após serem transportadas escondidas em um cargueiro, as obras se tornaram órfãs. Pois seus prováveis donos jamais foram recuperá-las, dado o elevado custo dos impostos cobrados. O desvio no destino de tais obras fez com que elas fossem doadas ao Museu Nacional de Belas Artes, instituição carioca que comemora 78 anos de idade em 2015. Agora elas estão disponíveis a uma comunidade maior de indivíduos, visto terem se transformado em Patrimônio Nacional. Mas tal doação salvaria tais obras do abandono?

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Todos conhecemos a precariedade de nossas instituições culturais. Há pouco mais de uma década, em 2003, o agora diretor cultural do Museu de Arte do Rio, Paulo Herkenhoff, assumia a gestão do MNBA diagnosticando um estado emergencial da instituição, com uma infra-estrutura doente e degradada. Cerca de dois anos após a posse, o curador da XXIV Bienal de São Paulo se desligava da instituição, afirmando o seguinte: “Eu poderia ficar dez anos lutando para implantar o plano de reestruturação física do prédio, encontrei o museu à beira de um colapso, mas não posso ficar um dia a mais quando mudam as prioridades. É inaceitável trocar a reestruturação física por um restauro de fachada porque é ano eleitoral.” Desde a posse de Herkenhoff, o MNBA encontra-se em reforma, tendo sua conclusão sido adiada diversas vezes, prometida, ano passado, para 2017.
Burocracia; alta taxação de impostos; precariedade institucional: tais características da realidade cultural brasileira são tão presentes no processo de conservação de nosso Patrimônio Nacional que poderíamos até ir além e dizer que são estas dificuldades, e não as obras, o nosso real patrimônio. Não devemos ser moralistas envoltos em pessimismos históricos: a transformação de obras de arte em patrimônio nacional é uma operação que está no cerne de todas as instituições, brasileiras ou não. Sendo assim, trata-se de mais um capítulo da “bárbarie cultural” que constitui cada instituição museológica e etnográfica, fundada sobre ambíguas propostas de conservação, de apropriação e de anexação.

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Quanto às obras, há que se reforçar a extrema valia simbólica do conjunto, contando com trabalhos de artistas de renome internacional, como Michelangelo Pistoletto (Tutti Designers 1989/2005), Anish Kapoor, Victor Vaserely, Antony Gormley (Polyedra Work) e Niki de Saint-Phalle (Faucon Bleu, 1980). Soma-se a isso obras de importantes criadores brasileiros: Jorge Guinle Filho (Zumbido Zoantropico, 1982), Juarez Machado, Daniel Senise (São Sebastião, 1991), Os gêmeos, Beatriz Milhazes, Cildo Meirelles (a serigrafia Fósforo) e Sérgio Camargo. Completam a seleção Alexander Gore, Edgar Negret, Callum Innes, Francois Xavier Lalane, Ivan Navarro (o tríptico Shortcut) e Miguel Angel Rios (La Sombra Impalpable, 1994).

A diversidade de nomes e propostas resulta em uma exposição dispersa, com uma perspectiva curatorial que opta por apresentar as obras não por elas mesmas, mas por sua biografia comum, sua contingência legal. Resulta daí uma disposição espacial espremida, ocupando apenas uma sala do enorme MNBA, tendo este espaço único que abrigar poéticas as mais díspares. Zumbido Zoantropico, de Jorge Guinle Filho – uma tela imponente, apresentando um campo cromático ávido e explosivo – convive com a figuração mansa dos Gêmeos, ou com um falcão fofo de Niki de Saint-Phalle.
Além de Guinle, destacam-se as seguintes apreensões: os trabalhos ópticos do light artist Ivan Navarro e de Anish Kapoor; o São Sebastião de Senise, reduzido a uma corda retorcida em tons terrosos, criando uma textura visual de forte impacto; a cartografia de Angel Rios e seus processos simbólicos de reterritorialização; a lâmpada (como sinônimo de ideia) transformada por Pistoletto em mala de alumínio e neon “conceitual”; e, claro, a tela milionária de Sergio Camargo.

Categorias: Blog. Tags: Alexander Gore, Anish Kapoor, Antony Gormley, Barbara Kruger, Beatriz Milhazes, Bruce Nauman, Callum Innes, carrossel, Cildo Meirelles, Daniel Senise, Edgar Negret, Francois Xavier Lalane, Ivan Navarro, Jorge Guinle Filho, Juarez Machado, Michelangelo Pistoletto, Miguel Angel Rios, Niki de Saint-phalle, Os gêmeos, Paulo Herkenhoff, Sérgio Camargo, Victor Vaserely e Yoko Ono.