“O que eu faço é música”, escreveu Helio Oiticica em um dos seus últimos textos, estabelecendo um forte elo entre as artes visuais e a música. Os diversos significados desta expressão na poética do criador de Tropicália (1967) – título que não gratuitamente batizou o movimento musical – apontam também, mesmo que introdutoriamente, para a freqüência cada vez maior de poéticas artísticas contemporâneas que apostam na mistura entre os dois tipos de manifestações.
Bons exemplos podem ser encontrados justamente em alguns dos 88 pavilhões nacionais da 55a Bienal de Veneza, tanto no Giardini quanto em inúmeros outros locais espalhados pela cidade. Mas o que é o Giardini?
Tradicionalmente, a Bienal reúne, a cada edição, exposições de diversos países, que se fazem representar por seus pavilhões construídos no Giardini, um parque localizado na ponta de Veneza, no Sestieri Castello. Desde 1998, no entanto, aos pavilhões, veio se juntar uma exposição internacional com curadoria convidada. Para dar conta desta ampliação, a Bienal ocorre não apenas no Giardini, mas em um imenso depósito próximo a ele, a Arsenale, onde concentram-se grande parte das exposições. Além destes dois espaços dedicados à arte, há inúmeros outros distribuídos nos Palazzos e Chiesas de Veneza, fazendo a cidade de Vivaldi a capital das artes.
No pavilhão alemão, representando a França (pois os dois países trocaram, nesta bienal, de pavilhões) Anri Sala apresenta Ravel, Ravel, Unravel. A ambiguidade do título revela o foco de trabalho do artista. Sala ocupa três salas do pavilhão com duas video-instalações: Ravel consiste num díptico (disposto verticalmente) onde, em cada tela, assiste-se à mão esquerda de um famoso pianista (Louis Lortie ou Jean-Effiam Bavourzet) tocando Concerto para piano para mão esquerda, de Ravel, ao piano; Unravel, por sua vez, mostra a DJ Chloé, por meio da mixagem de vinis, entrelaçando as duas performances (na primeira sala, vemos apenas seu rosto; na última, suas mãos). De grande impacto, a video-instalação de Sala impressiona justamente por mostrar a diferença de tempos, a discrepância bem como o encontro entre as performances das mãos esquerdas dos pianistas a partir de uma partitura criada inteiramente para elas – a direita permanece sobre a perna; e as tentativas da D.J. (como um editor de imagens) de unir as duas.
O servo Milos Tomic mostrou alguns dos diários e relatórios anuais musicais que o artista realiza com convidados ilustres, em especial o seu filho pequeno. Nos vídeos, a dupla aparece criando sons a partir dos elementos e situações mais ordinários: frascos de produtos, facas, músicos nas ruas, gemidos, falas etc. De fato, trata-se de um diário no qual o eixo narrativo é musical: a especificidade de cada dia se torna visível pela experiência sonora. O que talvez seja o mais belo deste trabalho de Tomic seja a imagem de uma filiação sem a mediaçao da autoridade. O pai torna o filho protagonista, tomando-lhe emprestado o procedimento infantil de contato com as coisas do mundo: os objetos, libertos de suas funções, tornam-se instrumentos musicais. Afinal de contas, criança gosta mais do embrulho do que do presente.
Quem passa despercebido pelo trabalho de Mathias Poledna logo diz: já entendi, ele pegou o número musical de um filme da Disney e agora está projetando aqui, no pavilhão da Sérvia. Quase isso. Na verdade, Poledna não se apropriou, mas criou o seu próprio número musical da Disney e, para isso, ele escolheu “I’ve Got A Feeling You’re Fooling”, canção popular dos anos 30, escrita por Arthur Freed e Nancio H. Brown.
Ao criar o seu próprio número de desenho animado, colocando um burro marinheiro fofo de protagonista, sapateando e dizendo: “Eu acho que você está me fazendo de bobo”, Poledna retoma um modo de produção industrial e intensivo. Para a fabricação deste 35 mm colorido, foram necessários cerca de 5.000 desenhos feitos à mão, por exemplo. A relação entre o volume de produção necessário para um filme que comenta isso ironicamente faz juz ao pastiche que é Imitation of Life.
No pavilhão britânico, registros fotográficos de David Bowie e de sua turnê nacional de Ziggy Stardust, no final de 1972, compõem o trabalho de Jeremy Deller. Trata-se menos de uma homenagem do que de um contraste, semelhante àquele surgido no trabalho de Mathis Poledna. Pois, às fotos de Bowie, são justapostas às fotos da época, marcada por depressão econômica, industrialização e ações do IRA. O contraste entre o espetáculo – seja no número musical da Disney, seja no show do Bowie – e a realidade (do modo de produção, da ordem diária) situa o espectador, revelando países paradoxais. Os trabalhos de Deller, em especial, lidam com a memória cultural da Great Britain, aproximando fatos antagônicos e criando espaços dialéticos atrativos, como um onde o espectador é convidado, de modo ironicamente gentil, a tomar o tradicional chá inglês enquanto digere a exposição.
A polêmica ficou por conta da obra Everything was forever, until it was no more, do polonês Konrad Smolenski. O artista, que também atua na cena musical independente, colocou dois enormes sinos, semelhantes aqueles espalhados pelas torres de Veneza, no interior do pavilhão da Polônia. Acompanhavam o par de instrumentos, dois muros de caixas de som situados atrás de cada sino: juntos, estes recursos musicais tocavam, a intervalos regulares, uma peça musical especialmente criada para a ocasião. A frequência e o alto volume incomodaram a vizinhança do Giardini. Por este motivo, a instalação sonora teve que ser removida.
A música também estava presente no pavilhão do Japão ocupado por Koki Tanaka. Abstract Speaking: sharing uncertainty and collective acts mostra trabalhos onde Tanaka reúne grupos de profissionais (em especial, artistas), para um trabalho coletivo. Por exemplo, dez cabeleireiros precisam cortar o cabelo de uma pessoa, ou um grupo de poetas tenta criar um poema. O elemento comum a estes vídeos é o fracasso. Os vídeos mostram indivíduos angustiados, tentando resolver o trabalho em comum. As tentativas e os erros, no entanto, têm a sua beleza, pois revelam humanidade. De fato, construir algo coletivo não é fácil. Por não banalizar o esforço em comum, partilhado, o trabalho de Tanaka se faz muito pertinente aos dias atuais. Talvez seja esta música que queiramos tocar e dançar.