Em Curitiba, um evento cultural se repete em abril de cada ano como um fenômeno natural. Trata-se do seu Festival de Teatro, que, em sua décima segunda edição, cumpre a promessa de transformar, durante duas semanas, a capital do Paraná na capital das Artes Cênicas. O fenômeno é curioso e extraordinário: tal qual bandos de pássaros que migram, por curtas e longas distâncias, em busca do perfeito local de procriação, os grupos de teatro, provenientes do vasto território brasileiro, vooam rumo à Curitiba por motivo semelhante, a reprodução.
Não nos entenda mal: a reprodução aqui passa ao largo de sua definição serial. Não se produz cópias a partir de um original (mesmo que não seja possível descartar a cópia como procedimento poético). A reprodução de que nós estamos falando tem menos a ver com a reprodutibilidade técnica e mais a ver com a reprodutibilidade biológica. O diálogo, a troca, o encontro, o acasalamento, a gestação, a criação e o cuidado são palavras de ordem nesta revoada cultural que se chama Festival de Curitiba.
Em 2013, o trio de curadores Celso Curi, Lucia Camargo e Tania Brandão selecionou 32 espetáculos, dentre inéditos, internacionais e destaques da cena brasileira. À mostra oficial, unem-se a Mostra Baiana, sob o olhar de Wagner Moura, a Mostra Grupos de BH: Teatro para ver de Perto, organizada pelo Galpão Cine Horto, a Mostra Novos Repertórios, voltada à cena curitibana, bem como inúmeras peças que fazem a cidade respirar e reproduzir teatro.
Um dos destaques da Mostra Grupos de BH: Teatro para ver de Perto – que o TEMPO acompanha com prazer desde 2012 – foi A Noite Devora os seus filhos, peça adaptada e dirigida por Gustavo Bones a partir do texto dramatúrgico do argentino Daniel Veronese.
O espetáculo aposta na circularidade do trauma: em cena, duas mulheres – uma jovem e outra de meia-idade – expõem trajetórias de personagens excêntricos (um homem que se auto-amordaça ou um fotógrafo cego, por exemplo) ao mesmo tempo em que revelam à plateia suas vidas. Mãe e filha vivem unidas em sua solidão, oscilando em suas funções de cuidado e atenção: por meio de saltos temporais que embaralham a aparente continuidade narrativa, ora relata-se situações onde a mãe, já no final da vida, precisa da ajuda da filha; ora focaliza-se a infância da filha sob os olhos da mãe. Apesar da diferença de idade das atrizes sugerir uma definição imediata das funções familiares, não há tal correspondência etária. A voz narrativa, a cargo de Gláucia Vandeveld e Renata Cabral, aposta sempre na duplicidade, propondo um jogo especular no qual a narradora parece se desdobrar e se redobrar.
Sob o desfile narrativo de indivíduos e fatos, subjaz algo na(s) vida(s) daquela(s) mulher(es) da ordem do trauma. A experiência dolorosa destas figuras femininas – associada às trajetórias trágicas de Antígona e Medeia por meio da leitura, em um momento do espetáculo, de fragmentos destes textos canônicos – vincula-se diretamente aos relatos amorosos que são compartilhados por estas, todos sob a cadência da efemeridade dos encontros e do fracasso das paixões. A narrativa parece girar em torno de um acontecimento traumático sugerido logo no início e retomado ao final do espetáculo: o estupro da filha.
Sem, no entanto, abordar explicitamente o tema, A noite devora os seus filhos expõe a persistência fantasmática do evento violento, como uma espécie de rede de fundo a partir da qual as lembranças se revelam. Esta trama traumática se materializa em cena por meio da grade em formato de L que define o espaço de atuação das duas protagonistas. Diante desta parede permeável, composta por fragmentos de portões e janelas, são dispostos os móveis e objetos que constituem a sua casa. De fato, o espetáculo aposta em uma cena que se dá a ver como um espaço psicológico desintegrado, cuja desordem fora disparada pela brutalidade masculina e opressora.
“Teatro da desintegração” é uma expressão cunhada por um crítico argentino para designar a obra de Daniel Veronese e de outros dramaturgos portenhos como Javier Daulte, Rafael Spregelburd, Alejandro Tantanian, Federico León, Bernardo Cappa, Ignacio Apolo e Marcelo Bertuccio. A desintegração possui algumas dimensões: diz respeito não só à fragmentação do sujeito, mas à desintegração social e também das convenções teatrais. No caso específico de Veronese, é interessante notar em sua obra a recorrência da Noite (em obras como La última noche de la humanidad; Eclipse en camino; La noche canta sus canciones; Noche Cerrada; Del maravilloso mundo de los animales: Conversación nocturna) como poderosa imagem para abordar as contradições da sociedade contemporânea. A noite devora os seus filhos se insere neste panorama, tendo a montagem de Gustavo Bones conferido justo peso à proposta dramatúrgica de Veronese.