Não se pode ficar imune quando se chega pela primeira vez a uma cidade. Desta vez foi Viena que me recebeu, imponente e suntuosa. Tudo é de fato extremamente limpo, horizontal, as bicicletas, “trams” e vespas passeiam pelo asfalto castigado pelo sol de um verão tardio.está espalhado por todo o mapa, celebrando os 150 anos de sua obra e vida singular. Turistas por toda parte fazem fila para ver seus trabalhos mais importantes e junto à eles obras de Schiele, Kokoschka, além dos que estiveram perto de suas criações.
Tudo parece singular: as calçadas são limpas com escovas em alguns lugares ao invés de vassouras, ao mesmo tempo os fumantes continuam tragando seus cigarros de puro tabaco em áreas fechadas; roupas mínimas são as únicas que suportam o sol a pino que só sai de cena pelas dez horas da noite. Bicicletas tem prioridade no transito; eu fico ali, meio gringo, meio perplexo com meu inglês por várias vezes não entendido, quiçá decifrado, contando o número de letras para saber se estou na estação ou na direção certa do metrô.
Mas, vamos lá, estamos aqui para trabalhar !
A convite da Ocupação Câmbio, onde sou diretor artístico, e da organização do Festival Impulstanz, recebo meus “tíquetes” e me apronto para assistir e fazer parte desta “festa” que pretende celebrar a dança durante um mês na cidade.
Destaco aqui três trabalhos que merecem uma “menção instantânea”:
Danses Libres / Cecilia Bengolea & François Chaignaud
Com a participação dos criadores, Cecilia Bengolea & François Chaignaud e Suzane Bodak, Thiago Granato, Alex Mugler e o pianista Aurélien Richard se apresentam, no palco do Kasino em Schawarzenbergplatz, uma série de coreografias baseadas no trabalho de François Malkovsky (1889 – 1982). Uma imersão na obviedade, segundo o programa e, inspirado na aulas da discípula entusiasta desta técnica a mais de 15 anos, Suzanne Bodak, também no palco. O que se propõe é criar “ comunicação e estranheza”, principalmente no que se refere às questões humanas, numa “paisagem natural e bucólica”. Alguns carneiros, entre fardos de capim, frutas e um pianista nú que, a cada cena, sorteava um tema a ser interpretado.
A encenação não consegue chegar as suas intenções originais e o calor da sala em nada ajudou para fruição do público que, inquieto, pouco usufrui da proposta. A surpresa, para este que escreve, foi quando, em sua maquiagem derretida, a presença de Thiago Granato, se revelou em cena. Alguns dos interpretes estavam com pinturas corporais em verde, vermelho, preto e, por trás de sua coloração desbotada pela suor desesperado de seu corpo, Granato dança soberbamente e, através de seus poucos solos, o espetáculo acaba ganhando contornos diferenciados e o público o aplaude com mais interesse que os demais “quadros dançantes”. Ao final, os carneiros seguem seu dono real. Ele carrega o que eles mais querem: comida. O que resta apenas são as intenções artísticas da dupla e seu conjunto heterogêneo, apesar das suas relevantes intenções.
Stardoom / The Bandaloop
Dentro da programação [8:TENSION], no Espaço WUK, composto de várias salas, bares e uma área de convivência para um público variado e boêmio, a divertida banda tcheco-austríaca The Bandaloop apresenta seu show teatral dançante de puro entretenimento pop e de qualidade para o início da noite vienense. Tudo é cercado de ironia e o trio formado, pela cantora e performer, Barca Baxant, e os “siameses”, feras em keyboards, batidas e bases eletrônicas, Justin Case e Matin Wal. O espetáculo-show tem participações de mais dois animadíssimos, e marciais, dançarinos de rua Danìel Harb e Kathrin Hassenrück na ultima música. Não houve bis.
A ironia declarada ao mundo fashion e das divas pasteurizadas, a potencialidade vocal da cantora-modelo, em lycra inteira com uma “rede em pontos largos” aderente ao corpo como meia escultórica muito aderente a modelo manequim cantora. O roteiro conciso com direito a tropeços numa escada falsa e a distribuição de rosas vermelhas que logo após são pedidas para serem jogadas sobre a mesma, em alusão às estrelas, ao final do espetáculo. O esdrúxulo e o glamor(oso) que passeiam de braços dados nesta divertida concepção, recheada de clichês, são trunfos. O que ficou foi a vontade de comprar o CD, ouví-lo e provar uma das tantas cervejas dispostas neste inspirado(r) espaço cultural. A escolhida foi uma mistura que vem ao encontro do que eu estava precisando – limonada e cerveja, juntas no mesmo copo.
Antigone Sr. / Trajal Harrell
Oriunda de ambicioso projeto que procura investigar questões originárias da tragédia grega de Sófocles, a Cia. de dança Trajal Harrell, de Nova York faz uma reflexão sobre o homem/mulher contemporâneo pela ótica (gay) devastadora e trágica, contendo todo o peso de sua trajetória épica em pura sintonia com questões que nos cercam como “moiras culturais” dentro do fatídico “here and now”/ aqui e agora.
Tudo é excessivo e faz parte de um projeto ainda maior de diferentes tamanhos intitulados “eXtra Small, Small, Medium (ou “Mimosa”), Large e eXtra Large”, faltando ainda a sua ultima parte (M2M- Made to Measure – Feito sob medida). Os espetáculos estão relacionados ao imaginário do coreógrafo-autor e sua trupe igualmente autoral. As múltiplas referências deste inquieto diretor reflete e faz pensar. Em seu espetáculo, na mesma escaldante e bela sala do Kassino am Schawarzenbergplatz (alguns ventiladores são ligados em determinadas partes para alívio de todos) existem pontos de referencias dramatúrgicas: Raça (ele negro nascido na Harlem), gênero, história e cultura.
A plateia se desorienta a cada cena sugerida, a cada instante, seja ele dilatado ou propositalmente arrastado. Impossível esquecer o hino cantado, a plenos pulmões pelo performer Thibaulc Lac, com a plateia lotada e de pé, ao seu pedido, sob a égide de Britney Spears, como uma lamento trágico:
“My loneliness is killing me,
I must confess,
I still believe (still believe)”
As evocações sobre I AM, WE ARE que passa por uma série de ícones e fatos históricos que permanecerão pelo nossa existência até o nosso leito de morte, são expostas excessivamente corrompendo nosso signos e significados.
Tudo isso não faria sentido se a dança não estivesse elevada a potência máxima em vários quadros onde os artistas-bailarinos-performáticos esbanjam talento e maturidade no que fazem, brincando no palco como nas “pistas vogues” e/ou nas passarelas do mundo fashion.
Thibault Lac, Rob Fordeyn, Ondrej Vidlar, Stephen Thompson e o próprio coreógrafo se desdobram em mil possibilidades para encarnar, disputar personagens e modelos, trocando inúmeras vezes as mesmas peças de roupa que, rearticuladas, criticam os grandes estilistas e, até mesmo, outras marcas menos valorizadas pelo mercado.
Este nada fácil e essencial trabalho sobre “o humano” e seus incontáveis gêneros e espécies estão no palco para serem deglutidos e questionados num ensaio escancarado para uma plateia que reage diferentemente, individualmente… Impossível ficar imune ao discurso manifesto de seu autor coreógrafo: “That’s Antigone, bitch ! It’s about to be a Greek tragedy here! The house o Thebes is in the house”.
O crítico do The New Yorker, Andrew Boynton, complementa: The House of Thebes, The House of Dior, The House of Ninja, The House of La Beija, The House of Extravaganza – Sofocles, meet high fashion and Harlem Drag Culture” e, continua ele, “pelas mãos de Mr. Harrell, a junção destas peças elementares começam a fazer sentido” e eu concordo.
César Augusto
Agosto / 2012