Quem assistiu à apresentação do grupo Favela Força, sob a direção de Fabiano Freitas e Carmen Luz, no TEMPO_Festival, pôde notar que o trabalho do grupo é rarefeito. Não se trata, porém, do sentido negativo do termo, em que a apresentação careceria de algo que a fizesse densa, como se rarefazer fosse uma ação pejorativa e degenerativa. Ao contrário disso.
Em Favela Rouge, as principais referências já estão no título do trabalho. De um lado, a Favela: fenômeno urbano e altamente contemporâneo, local de desvios, persistências, visões e residências oblíquas, fonte de inspiração tanto para artistas do asfalto, como Helio Oiticica, quanto para aqueles artistas nascidos e criados no miolo deste modo peculiar de comunidade. No caso aqui descrito, a Favela é identificada: trata-se da Vila Cruzeiro, residência dos artistas e principal fonte de inspiração. A segunda palavra do título, Rouge, aponta para outro conjunto de referências, em especial, o Moulin Rouge (Moinho Vermelho), o Cabaret mais conhecido da França (pintado por Toulose Lautrec), fundado no final do século XIX e levado às telas de cinema no filme homônimo protagonizado por Nicole Kidman.
A articulação entre a Favela e o Cabaré no trabalho do grupo Favela Força não parte de um tratamento equânime dos dois mundos. Na realidade, o Cabaret é inserido no caldeirão cultural dos artistas da Vila Cruzeiro (cujo processo criativo contou também com workshops do grupo de percussão americano STOMP), tornando-se mais um elemento da rede descentralizada e heterogênea que é a Favela. O resultado disso, conferido na apresentação no TEMPO_FESTIVAL, revelou o processo de construção do grupo, em um espetáculo de estrutura aberta e sem elos dramáticos (não se trata de uma história com início, meio e fim). Apesar de não adentrar no terreno ficcional clássico e contar uma história, os próprios artistas atualizam as suas trajetórias no palco, transformando a apresentação em uma afirmação histórica criativa, onde os elementos e os fatos do cotidiano da favela se encontram suspensos de seus contextos originais, adquirindo outros olhares e qualidades.
Diante deste cenário estruturado de acordo com o exercício da liberdade, o que se nota é a suspensão como ato transversal e genuíno do grupo. Durante o espetáculo, suspende-se tudo: o corpo no ar, simulando, em câmera lenta, a queda resultante da bala perdida, ou ainda quando um integrante é carregado por outros; as cadeiras, viradas e reviradas pelos performers durante todo o espetáculo; as botas militares que, ao serem largadas no ar, sofrem o efeito da gravidade e instalam o chão; as pernas e os braços ditando ritmos e produzindo sons. Suspender, neste caso, é uma operação criativa crítica: significa resistir, enfrentar, afirmar, criar, produzir. Esta impressão se torna evidente no momento em que um corpo, após sofrer uma queda provocada por sons de tiros, é suspendido por todos os outros corpos no palco. Ao final do espetáculo, tem-se também o malandro, figura lendária do imaginário carioca, cujos passos desafiam a queda e a horizontalidade. O malandro oscila na verticalidade e seu movimento o faz patinar pelo chão, suspensa que está a figura em seu ritmo e cadência. Trata-se de um desequilíbrio voluntário, decorrente da investigação dos limites do próprio corpo, em que se afirma a instabilidade. Instabilidade do corpo, dos fatos, da história, das notícias, do mundo.
Favela Rouge é, portanto, rarefeito, na medida em que elege como operação crítica a suspensão. Suspender para ver que os limites (asfalto e favela, nacional e estrangeiro, homem e mulher) são tênues, passageiros, quase transparentes. Rarefeito, pois esta qualidade aparece justamente na reinvenção da favela que o grupo realiza no palco. O Favela força sobe ao palco para retirar a densidade de um ar cruelmente pesado ( o ar do dia-a-dia), de modo a revelar para os corpos, do público e dos performers, a possibilidade.