Realizada originalmente por Márcia X em 2001, Pancake foi assim descrita pela própria artista:
Em pé, dentro de uma bacia de alumínio (80cm de diâmetro), abro uma lata de Leite Moça utilizando uma marreta pequena e um ponteiro. Derramo o leite condensado sobre minha cabeça e corpo. Repito a ação com todas as latas. Em seguida abro um pacote de confeitos coloridos colocando o conteúdo numa peneira. Peneiro os confeitos sobre minha cabeça e corpo. Repito a ação com todos os sacos de confeito. Os vestígios resultantes da performance permanecem em instalação.
Abaixo, o texto – disponível no site de Márcia X – que a crítica e curadora Glória Ferreira elaborou sobre a performance.
Parque Lage, 2003: quilos e quilos de ‘leite de moça’ escorrem pelos longos cabelos e por todo o corpo em roupas brancas. Confeitos coloridos tudo cobrem. Por contingências, foi a primeira performance de Marcia X que tive o privilégio de presenciar. A espécie de estátua que se foi configurando com seu espesso e extremamente expressivo relevo trazia a imagem de Maria Madalena, de Donatello, que também, por contigências outras, estava muito prõximo de meu horizonte naquele momento. Liberdades de associação permitidas pela emoção. Ao ser convidada para essa homenagem, a imagem se fez cada vez mais presente, não por afinidades que a histõria da arte poderia assegurar, mas pelo conjunto de significações que tenho, embora tardiamente, aprendido a conhecer do seu universo poético.
Como da referida Madalena, emanava uma atitude interior, uma consciência individual que não remetia apenas à escultura do artista florentino, mas à prõpria histõria/hagiografia da prostituta convertida, inseparável de uma longa tradição misõgina sobre a condição feminina. Inseparável também da vastíssima iconografia que vai das imagens medievais a Rembrandt, de De La Tour a Cézanne ou, ainda, de El Greco a Francis Bacon, na qual se declinam penitência, dor ou êxtase.
Entre Eva, encarnação da sedução do homem, mas que faz a morte entrar no mundo, e Maria, que abre as portas do Paraíso, sua imagem marginal, ambígua e pertubadora por conjugar o pecado e sua remissão, não deixa de remeter às palavras da artista sobre seu interesse pelas “obsessões culturalmente associadas às mulheres, como beleza, alimentação, rotina, limpeza e religião”.
O leite condensado, bebida energética e conservável, o milkmaid vital durante a Guerra Civil Americana, e que se dissemina no século XIX investindo sempre, em termos de imagem, no jogo duplo da virgem/donzela-leiteira, associa-se no imaginário dos brasileiros ao nosso gostinho de infância: o brigadeiro. Espécie de trufa pobre, mas que também guarda a sua histõria como moeda de troca para angariar donativos à campanha do ”bonito e solteiro” brigadeiro Eduardo Gomes na eleição que disputou (e perdeu) com Dutra, em 1945. Madalena e brigadeiro. Mundo carnal, subjugado aos sete demõnios, e mundo infantil fundem convenções e cõdigos antagõnicos, desvelando o engajamento político de Marcia X em suas escolhas éticas e artísticas.
Ao privilegiar como meio de expressão a performance, com a implicação do artista, “em pessoa”, na obra, Marcia questiona o dispositivo de procuração, em seu duplo valor de significação autõnoma e mediação, ocupado historicamente pela obra de arte. E parece apontar para o “x” do problema: o papel do artista e da arte na sociedade atual. Embora o “x” aposto a seu nome derive de uma contenda com uma representante do beautiful people brasileiro, o signo se abre a diferentes camadas de referências que reverberam em seu trabalho. Por exemplo, segundo Houaiss, o “x” na biologia simboliza a hibridez; na matemática, a incõgnita, a variável independente. Nas TVs, a pornografia, a sacanagem. Ou ainda, como primeira das coordenadas cartesianas – no caso, isolada e associada ao sujeito da ação – descontrõi a possibilidade de um espaço homogêneo e sinaliza a experiência subjetiva do espaço.
Evoca, igualmente, a célebre música de Noel Rosa: “Ser estrela é bem fácil / Sair do Estácio é que é / O ‘x’ do problema”. Parafraseando-a, ser “estrela” nos anos 80, quando Marcia inicia suas atividades artísticas, parecia, sem dúvida, o caminho mais fácil, dadas as benesses oferecidas pelo mercado de arte. O ‘x’ do problema, então, não seria deixar um possível espaço assegurado em uma comunidade ou carreira, mas interrogar os fins da arte. Como foi sua opção, ao deslocar para o artista a legitimação da arte sem denegar o contexto de crise da obra e da prõpria arte. E, assim, ampliar as possibilidades de ação e a liberdade do fazer e refazer. “Independente, conforme se vê”, ainda segundo Noel, a arte de Marcia X pode ser considerada uma poiesis da existência. Humor e transgressão. Pancake.