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39 INTERNATIONAL FILM FESTIVAL ROTTERDAM: FAVELA É LINGUAGEM

“Favela é linguagem”: a frase projetada sobre a parede do Oi Futuro na apresentação do grupo Favela Força no último Tempo Festival ecoou em Rotterdam, na Holanda, no 39  International Film Festival, que aconteceu entre os dias 27 de Janeiro e 07 de Fevereiro.

Em 2010, o quarto maior festival de cinema da Europa (atrás apenas de Cannes, Veneza e Berlim), reconhecido por reservar boa parte de sua programação a produções independentes e experimentais, ofereceu ao público um conjunto representativo de filmes criados por cineastas de todo o mundo. Para o VPRO Tiger Awards – prêmio dedicado às produções de primeira (ou de segunda) viagem, foram selecionados 15 filmes, dentre os quais destacam-se o japonês Autumn Adagio de Inoue Tsuki, o russo Mama de Yelena & Nikolay Renard e o chileno Alamar (To the Sea) de Pedro Gonzalez-Rubio. Além da mostra competitiva, havia também dezenas de filmes organizados em seções temáticas, como a Bright Future, programa que funciona como uma plataforma para cineastas do futuro.  Neste ano, esta seção foi composta pelo filme brasileiro Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro e também por White Stripes: under great white northern lights, documentário-show-de-rock de Emmet Malloy que acompanha a improvável turnê da dupla-banda-de-rock pelos bares, asilos, praças e instituições de caridade canadenses em 2007, em comemoração aos dez anos de carreira dos irmãos.

Além da Bright Future, há também outras sessões como a  Spectrum, composta por produções de cineastas que já estão há algum tempo na estrada (como Robert Patton e Chris Pettit) e Where´s Africa, programa dedicado inteiramente à produção cinematográfica deste continente.

Além de Avenida Brasília Formosa, a representação brasileira em Rotterdam contou também com os excelentes  Moscou, de Eduardo Coutinho,  e Belair, de Bruno Safadi e Noa Bressane.  O documentário de Coutinho torna instáveis as fronteiras entre realidade e ficção, ao exibir ensaios e performances dos atores do grupo teatral mineiro Galpão a partir d´As três irmãs, de Tchekhov, sob a direção de Enrique Diaz. Já Belair refaz a trajetória da produtora de cinema independente Belair, fundada por Rogério Sganzerla e Júlio Bressane em 1970.

Engwentro, das Filipinas e dirigido por Pepe Diokno (diretor que esteve presente na noite de exibição e, simpático, respondeu a algumas perguntas dos espectadores) conta, em aproximadamente uma hora, a história de dois irmãos que (sobre)vivem em uma favela filipina. Marcado por longos e ágeis planos-sequência que penetram os becos e as vielas das favelas, o filme mostra as decisões, os obstáculos e a difícil situação dos jovens filipinos, que vivem entre o desamparo público e a tentação do crime organizado. Neste filme, a favela é linguagem tanto na forma quanto no conteúdo. De um lado, Engwentro usa e abusa do efeito-documentário que a câmera tremida concede ao filme, conjugado a uma excelente fotografia. De outro lado, a história se concentra na relação entre Richard, o irmão mais velho e já envolvido com a criminalidade, e Raymond, o irmão mais novo que se encontra no momento exato de decidir o rumo de sua vida: o estudo deficiente para uma carreira incerta ou o crime organizado para uma morte certa.

Outra produção das Filipinas, Butterflies have no memories, de Lav Diaz, leva à sala de cinema a realidade decadente e sem perspectiva de um grupo de homens filipinos, que não fazem nada a não ser beber e reclamar da vida. Aqui, a miséria é retratada de outro modo: enquadramentos fixos em P&B revelam cenas extensas em que, aparentemente, nada acontece, mas que dão a ver o tempo do pensamento de cada personagem e a imobilidade em que se encontram. Butterflies have no memories é, na realidade, uma versão 19 minutos mais longa do filme apresentado por Diaz no Jeonju – Festival de Cinema Coreano.

Já o angolano Balas e Pistolas, de Francisco Cafua, retrata de forma satírica o cotidiano de uma favela na Angola onde qualquer problema não é resolvido de outra forma a não ser com tiros. O filme arranca do público algumas gargalhadas ao inverter situações rotineiras das favelas. Um bom exemplo é a cena em que duas mulheres religiosas estão conversando em uma das vielas, lamentando a falta de sorte dos meninos que, sem oportunidades, transformam-se em traficantes. Surgem então dois pivetes que assaltam as duas mulheres. A tentativa, no entanto, é frustrada pelas próprias religiosas que, surpreendentemente,  sacam suas pistolas e matam os pivetes imediatamente.  Ao extender para toda a favela a lógica cruel dos traficantes, Cafuá recria de modo cômico e absurdo o cotidiano de mortes e ameaças nas favelas. Talvez seja devido a isso que Balas e Pistolas remeta aos jogos de poder e aos desfiles de mortes que povoam as tramas de William Shakespeare. Tanto em Macbeth, por exemplo, quanto em Balas e Pistolas, o poder é circunstancial, movendo-se de um ser humano a outro, conforme as mortes são anunciadas e realizadas. O traço shakesperiano na obra de Cafuá é reforçado ainda no modo teatralizado como acontecem as mortes: cada tiro é marcado por um efeito sonoro e visual recorrente e os mortos não sangram,nem são perfurados por tiros, apenas caem. Por mais que apresente o mesmo contexto, Balas e Pistolas difere-se radicalmente de Engwentro, uma vez que o primeiro filme não é marcado pelo apuro técnico que apresenta o segundo. Ao contrário disso, Balas e Pistolas parece ser conscientemente amador, apresentando uma estética quase tosca (fato que não é, por si só, um julgamento de valor mas que neste caso reforça a qualidade do filme).

Tanto Engwentro quanto Balas e Pistolas apresentam versões locais do fenômeno global que é a Favela. Neste sentido, não há como não mencionar outros filmes com abordagens semelhantes, como o já clássico Cidade de Deus (de Fernando Meirelles, 2002), Tropa de Elite (de José Padilha, 2007) e o britânico passado na Índia Quem quer Ser um Milionário (de Danny Boyle, 2008). (E por falar em Índia, como nas artes visuais, a produção cinematográfica indiana reservou boas surpresas em Rotterdam, como Kutty Srank (Sailor of Hearts) de Shaji N. Karun). Todas estas produções, apesar de apresentarem estéticas e narrativas completamente díspares, se apropriam da Favela, não com a intenção de traçar-lhe o perfil mais adequado e verdadeiro, mas com o intuito de mostrar a potência da favela enquanto ficção, expressão e mercado. Ao lado de outras manifestações artísticas brasileiras, como o Favela Rouge,  o Nós do Morro e o AfroReggae, este filmes parecem confirmar a frase projetada pelo Favela Força em sua apresentação: favela, definitivamente, é linguagem.

Confira aqui os ganhadores do VPRO Tiger Awards.

Categorias: Notícias. Tags: Balas e Pistolas, Cinema, Engwentro, Enrique Diaz, Favela Rouge, International Film Festival Rotterdam e White Stripes.