Pela libertação das palavras ou
Reflexões sobre o processo de montagem de “Silêncio”
Certas palavras foram sequestradas de seu simples conteúdo semântico original e alçadas ao cunho de um conceito, sendo condecoradas com uma significação mais complexa, já que se trata de um conceito e não de simples palavra. E, com isso, a pobre palavra deve abdicar da riqueza do mundo dos diversos significados, sozinha em sua masmorra, construída pelo dito gênio que a encarcerou, para sempre, neste único conceito, que tem por premissa ser um complexo.
A solitária palavra se debaterá, recorrendo às suas raízes etimológicas, causando horror em todos diante da desfeita de tal palavra perante a honra de servir à causa do conceito.
E assim a indefesa palavra sucumbirá, esvaindo suas forças dentro dos altos muros da nobre causa dos conceitos, onde definhará rumo à morte.
Morte à palavra conceito.
Vida a palavra crua.
Faço esta denúncia em prol de inúmeras palavras que atualmente vivem em cárceres privados, masmorras e até campos de concentração. Uma tragédia iminente em diversas línguas. Libertemos as palavras. Que elas sirvam a conceitos mas não cerceemos sua liberdade. É preciso denunciar esta crueldade e salvar as pobres criaturas.
O texto teatral
Neste terreno minado entremos no teatro, onde o texto foi emasculado. Teve seu trono tomado por hordas de corpos ardentes que clamavam pela espacialidade tridimensional e o tempo presente num golpe de estado cruel. O texto soberano foi relegado a um subserviente recalcado. Se tratássemos de personagens humanos, sua decapitação o transformaria em livros de história mal ilustrados, mas como o texto se materializa na forma gráfica, se manteve altivo na nova condição de servo. A palavra resiste. A linguagem é origem e fim. Somos linguagem, e a palavra é o significante mais perfeito. Apesar de tentaram encarcerar a palavra em conceitos, ela supera sujeitos.
Silêncio
Escrevi um texto para teatro. E, antes de ser queimada na fogueira do pós-dramático, requisito meu direito a defesa.
Chamo a peça de “Silêncio”, do latim silentium, calar-se, não dizer palavra.
“Silêncio” é uma peça verborrágica, que trata das relações de poder.
A peça é uma fábula de poder, um raio x das estruturas hierárquicas revelando a ilusão de comunicabilidade gerada pela fragilidade nas estruturas de poder. O homem, em seu processo civilizador e organizador das incontroláveis pulsões animalescas, criou estruturas que organizam tanto a propriedade quanto a subjetividade. Nessa trajetória surgiram Deus, reis, religião e a ciência. A hierarquia entre os humanos é validada por essas instâncias de poder, mas suas pulsões explodem em guerras, desatando em catástrofes e explicitando o caos que vive debaixo das belas formas. Sob a pele de cada homem vive uma besta feroz que urra diante do primeiro arranhão que lhe lacerar a carne. A linguagem seria a forma mais completa de organização desse homem.
“Uma vez que as palavras, quando comunicam, não chegam a ter efeito algum, começa a se tornar evidente para nós que precisamos de uma sociedade na qual a comunicação não seja praticada, na qual as palavras se tornem nonsense, assim como acontece entre amantes, e na qual as palavras se tornem o que elas eram originalmente: árvores e estrelas e o resto do ambiente primitivo. A desmilitarização da linguagem: uma grave preocupação musical.” (CAGE, John. “O futuro da música”)
Durante o processo de ensaios de Silêncio um ator comentou de experiências anteriores onde o improviso, em sua potência do caos, levava impreterivelmente a uma forma fechada, e até a um “texto”, e que neste processo de montagem de “Silêncio” encontrou uma liberdade perigosa a partir de um texto. Um caminho inverso, avesso, subvertendo a linguagem com a própria palavra. O risco não reside na proposta, mas no viaduto que leva ao abismo do ator, sempre o ator, rumo ao perigo, ao incerto, diante do efêmero inerente ao teatro.