Em sua oitava edição, a Bienal de Berlim – uma das mais importantes exposições de arte contemporânea na Alemanha atualmente – optou por não concentrar as obras na região metropolitana. Ao invés disso, o curador canadense Juan A. Gaitan resolveu levar o evento para o Museen Dahlem – Staatliche Museen zu Berlin, em um distrito periférico a Berlim-Mitte, onde se encontram coleções etnográficas de diversas culturas, europeias e nao europeias. O museu junta-se a outros dois locais de exibição, o Haus am Waldsee e o KW Institute for Contemporary Art, este último espaço onde tradicionalmente se dá a Bienal.
Tal deslocamento do centro histórico esta completamente vinculado ao recorte curatorial proposto por Gaitan. Composta em sua maioria por artistas nao europeus, a Bienal de Berlim de 2014 trata de apresentar uma miríade de trabalhos que questiona as narrativas historicas oficiais, revelando ainda as feridas abertas dos processos coloniais. De fato, a exposição impõe ao visitante o questionamento dos limites e das contradições do progresso histórico, quando, por exemplo, estamos diante de trabalhos que tematizam processos exploratórios de diversas ordens: a mineração e demais formas de exploração ambiental, as diásporas resultantes de guerras e conflitos étnicos, os radicalismos nacionalistas, a apropriação cultural, os mitos consumistas etc. A atmosfera criada nesta Bienal de Berlim não oferece, portanto, tranquilidade. Há que se comprometer com os paradoxos que permeiam a condição contemporânea, investigando as diversas temporalidades que marcam o nosso presente histórico. Como resistir ao eurocentrismo? Vivemos ainda na regra ou na exceção colonial? O que fez o mundo globalizado com as cicatrizes coloniais? Tais são as perguntas suscitadas pelas obras expostas.
David Chalmers Alesworth, britânico, apresentou suas Textile Interventions onde o artista borda plantas baixas de jardins e paisagens em tapetes persas, produzindo uma sobreposição afim ao eixo curatorial.
Em Vanishing Point, o artista francês Jimmy Robert lança mão de duas referências brasileiras: a performance Bate Cabelo, da drag queen carioca Erik Vogue, realizada no Palácio Capanema, é apresentada ao som de Primeira Lição, poema escrito por Ana Cristina Cesar em plena ditadura. A tipologia da escrita apresentada no poema dá o tom desta instalação, formada por duas mesas, uma horizontal e outra vertical, ligadas entre si por um longo pergaminho sobre o qual são projetadas as imagens. Robert nos convida a apreender a instalação como se olha o corpo de um poema, conforme Cesar, “até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas”
A indiana Shilpa Gupta mistura fotografias, escritos, objetos e vídeo para focalizar as fissuras históricas dos processos de delimitação de fronteiras nacionais. Focalizando aqueles indivíduos que são deixados de lado dos nacionalismos, Gupta tem como ponto de partida os processos migratórios, as economias informais e demais atitudes vernaculares que impõem questionamentos às convenções identitárias. Resulta daí um trabalho potente capaz de revelar o caráter artificial e excludente dos discursos e fronteiras oficiais.
Naquele que talvez seja a obra mais impactante da Bienal, a canadense Judy Radul justapõe dois televisores, combinando captação direta de imagens e registros. Através de um sistema de câmeras “coreografado” no espaço, Radul expõe, de um lado, imagens captadas no Museu Etnológico de Dahlem, nas quais os visitantes observam artefatos de culturas não-europeias. Outro televisor exibe a mesma coreografia fílmica, gravada ao vivo, desta vez, no próprio local a partir de uma reconstituição do dispositivo de exibição de Dahlem. Tudo então se passa do seguinte modo: de um lado, observamos pessoas no museu. De outro, observamos nós mesmos fitando apenas os suportes de exibição, já que o displays nao apresentam obras. Tal justaposição trata de revelar muitos dos comportamentos que temos em centros culturais, indagando a respeito da natureza de relação que estabecemos com objetos trazidos de outros contextos. Mais do que isso, esta obra, intitulada Look. Look Away. Look Back., sintetiza o viés curatorial da Bienal de Berlim ao tornar explícita a relação de autoridade que o formato de exposição determina e sobre o qual o evento, muito acentuadamente, optou por investigar.