Nesse final de março, vi duas peças, uma seguidinha da outra: Conselho de Classe, com dramaturgia de Jô Bilac, e A porta da Frente, de Julia Spadaccini. Ambas as peças com textos premiados. Talvez por ter visto uma bem perto da outra, andei pensando sobre os pontos de aproximação entre elas. Faço aqui uma lista:
1. As casas estavam lotadas. Tanto o Sérgio Porto como a Laura Alvim. Lotadas, minha gente.
2. Nos dois dias em que fui, chovia. Águas de março. E eu fui pega desprevenida, meu pé ficou cheio de lama.
3. A dramaturgia de Jô Bilac desenvolve uma única situação: um conselho de classe em uma escola pública, que recebe a visita de um funcionário da secretaria de educação. Ali, são colocadas questões que vão desde as condições de trabalho dos professores, a visão quase missionária de sua função em sala de aula, os meandros de disputas de poder entre docentes. A situação caótica da educação pública é tão conhecida, há tanto tempo, e com clichês tão documentados, que há um impacto persistente: ver na sua frente algo que, por ser tão conhecido, troca de posição, ocupa o palco e torna-se estranho. A sensação de estranhar o banal.
4. A dramaturgia de Julia Spadaccini conta-nos de uma família que ganha um novo vizinho, um crossdresser. Com a chegada de Sasha, mãe, pai e filhos defrontam-se com seus segredos, fantasmas e incoerências. Julia mostra o preconceito enrustido. A vizinhança que finge não se conhecer. O medo do outro.
4.5
[Recentemente, aqui no prédio, morreu uma senhora dentro do apartamento. Dona Jaqueline, do 301. Foi assim: a diarista chegou e Dona Jaqueline não atendeu a porta. A síndica foi chamada, agitou o arrombamento do apartamento e finalmente deparou-se com o corpo morto. Veio bombeiro, IML e o escambau. No burburinho da portaria, de forma discreta, ficou bem claro que todo mundo sabia da vida da Dona Jaqueline – que no dia anterior, aliás, tinha ido à natação e comprado folhas verdes na feira. O prédio de zona sul é um cortiço moderno. A gente finge que não conhece o vizinho porque é mais fácil. Dona Jaqueline não era crossdresser. Não que eu saiba.]
[E olha, teve também um vizinho querendo colocar câmeras. E outro que recusou veementemente, odeia câmeras, mandou um “de jeito manêra”, a la Tim Maia. Todo mundo se perguntou o que ele anda fazendo por aí que não quer ser visto na telinha. Mas isso eu conto depois.]
5. Ser mulher, ser homem, ser cross. Em Conselho, as professoras são interpretadas por homens. Uma opção inteligente da direção: é tão comum vermos a imagem da professorinha, da tia da escola, esse é um personagem tão feminino, que vê-las interpretadas por homens (em uma linha realista, sem afetação) adiciona uma linha interrogatória para a proposta: o que é ser mulher? O que é ser professora? Em que medida o atributo de educar e cuidar é feminino?
6. “Você é um… travesti.”, diz o pai de família. “É só isso que eu sou?”, responde Sasha, em “A Porta da Frente”. Nessas linhas de diálogo, a indefinição – inicialmente, de gênero – torna-se um questionamento maior: o que você vê em mim? Você precisa ver em mim um gênero específico para ver além?
Em ambas as peças, muito mais interrogações que certezas, como faz a boa dramaturgia.
E vou comprar botas novas.