TRADUZIR

uma ficção, para ver se a vida se ajeita um pouco mais.

Como faz para ser aquilo que se é (mas ainda lá dentro)? 

Ada, Flávia, Helena e Nat,

Não foi aleatório. Talvez pela primeira vez não tenha sido. Escolhi alguma música que me cheirasse à transformação. Sinto ser exatamente isto o que eu preciso. Agora.
Dia longo. É curioso que esteja chovendo tanto e sem parar, desde cedo.
Meu par de tênis – recém-comprado – já está com a sola gasta e, por conta disso, cheguei em casa agora, com os pés, meias e alma lavada. Lavagem da rua.
Eu sou (quase todo) mundo.

Ouvi hoje muita coisa sobre quem eu sou. Sobre quem eu tenho sido.

Fiquei triste. Chateado. Ferido. Mas a vida não é drama. Não. É só que fico pensando sobre como fazer diferença, como fazer diferente, como me tornar aquilo que eu sei que sou, mas que os outros – ao meu redor – ainda não conseguiram ver.

Uma pausa? Não. Sem pausas, por favor. Falem, sigam falando. Minhas amigas, do peito e de ofício: que triste é saber que a minha força seca o seu impulso. Que triste é ouvir de vocês que lhes dá medo quando eu venho, sempre enfático, dizer sobre aquilo que penso, dizer sobre aquilo que sinto.

Eu esperava qualquer coisa, menos isto. Mesmo sem esperar, eu esperava outra coisa.

Não há drama. O drama é interno e escorre por todo o meu corpo. Eu não sei resolver. Eu ainda não sei sequer o que dizer, como proceder, não sei se saberei resolver, eu não sei nada. E voltei para casa, ressentido.

A minha ira é essa. Não poder domar um pouco do que sou. Os passos são meus, e mesmo que eu desvie das pedras ou das poças, chega um momento em que os pés andam sozinhos e o que dita o caminho é outra coisa, sem nome, sem explicação: algo inominável.

Estou chateado.

Não contigo, não com vocês, mas tão somente comigo. Com essa força tão fraca que me toma e atropela os meus ouvidos. Eu digo que escuto. Eu digo que vejo. Eu digo que recebo; mas hoje fui por vocês informado de que não. De que não é bem assim como eu me revelo.

De que esse projeto de filho, esse manifesto da diferença, talvez sobreviva apenas em mim, nas minhas poesias e na minha presença. Porque quando eu vou embora, talvez vocês tramem uma solução que possa me dar jeito. Eu não sou quem eu acho que sou.

Dilema. Sem drama. Estou ouvindo música cheirando à revolução. Não é para me sentir fraco e diminuído, não é música para fazer do meu corpo tela plana de televisão.

Nunca saltei tantas linhas após escrever frases tão curtas. Eu estou tentando arejar alguma coisa. Eu preciso aceitar que alguma ausência minha pode nos ser profícua.

Cobranças? Ouvi. E me sinto tão doado, tão esforçado, tão firme, que me estranha a afirmação ter vindo assim tão certa, tão categórica.

Se há alguma confiança em mim que tenha sido tenaz durante todo este tempo, foi uma só: a de que vocês são tão capazes quanto eu me sinto ser. Então me estranha que não esteja sendo em comunhão aquilo que eu achei – sempre – ter sido.

Não tenho rumo. Vou escrever um pouco mais para ver se cravo em mim esse desassossego recém-ouvido.

Como se escreve esse enjoo?
Como se dá conta do desejo urgente de ser, que seja por uma semana, sumiço de si? Abandono de tudo isso?

Acreditei tão forte em nossa poesia que – vocês me dizem – fiquei bruto. Burro. Torpe. Esses sinônimos que enganam (só porque são usuais e soam bonitos de serem ditos).

Uma pena – hoje – foi descobrir tudo isso.

Não há drama. Eu escrevo para não esquecer (mesmo sabendo que as palavras nos servem para esquecer).

Cogito soluções (sim, às vezes, solucionar é sim possibilitar que o mundo continue se descobrindo). Cogito que eu deva atuar o meu projeto (que segue vindo, que segue se tornando – sobre mim – e ante aos olhos teus). Cogito atuar não mais quem eu sou, mas quem eu gostaria de – já faz tempo – ter me tornado.

Não vou indicar que leiam isso que escrevo. Está aqui e é mais para mim do que propriamente para vocês.

É só isso. Interpretar a si mesmo, daqui para a frente, para ver se o personagem que quero ser se cola de vez em mim e me toma de mim mesmo, revelando-me outros abismos.

Cansei de mim mesmo e estou morrendo, lento, feito plástico que derrete fora do sol, que derrete sobre a mesa. Eu estou morrendo (em sonho e em vida). Eu estou partindo, lento, tão devagar, que ainda tenho a sensação de estar vivo. Deve ser tudo uma mentira.

Que cansaço chegar até aqui.

Quanta coisa conquistada, mas não o si mesmo.

Eu estou aqui. Começando uma ficção de mim mesmo, para ver se a vida se ajeita um pouco mais.

Diogo —

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