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MICHEL MELAMED E A MULTIPLICIDADE DO MACHADO

Iniciando as palestras do último dia do TEMPO_FESTIVAL, Michel Melamed adentra o palco do Oi futuro munido de um machado. Silêncio.  Que machado é esse? Melamed senta-se na poltrona, enche o copo de água mas bebe na garrafa.

Melamed trouxe o machado ao palco para tentar corresponder a expectativa habitual de sua presença: a polêmica. A situação inusitada, provocada pela entrada do artista com o objeto, liberaria o próprio artista de suas atitudes provocativas. Ledo engano. Que machado é esse?

O machado é a representação fidedigna do que Michel Melamed estaria sentindo: ele é o presente dado à mulher amada, a representação do amor do casal que, por fim, foi esquecido pela moça quando o casamento acabou. O machado permaneceu e Melamed o atualizou no palco do Oi Futuro. Nesta situação, o machado afirmava-se como índice da situação original, como resíduo de uma história absolutamente íntima, mas como referência pública ao envolvimento de Melamed com a ficção de Machado de Assis ( a minissérie Capitu) e também como símbolo do corte, da intervenção que o próprio artista realizou em seu próprio percurso artístico. O machado, portanto, não era apenas um machado. Tudo não é a mesma coisa.

A multiplicidade de sentidos contidos em um único objeto, ilustrada pela própria relação que Melamed institui com o machado, é um dos principais eixos norteadores de sua Trilogia Brasileira. Iniciada com Regurgitofagia, a Trilogia foi desenvolvida como uma proposição cujo objetivo  é a recusa à repetição desenfreada de padrões. Ao invés disso, a afirmação das possibilidades, a abertura para a multiplicidade de  sentidos, gestos, palavras, conceitos, movimentos, corpos e definições.

O próprio nome de seu primeiro espetáculo, resultante de uma bolsa em arte-tecnologia concedida ao artista, aponta para esta questão. Regurgitar seria, segundo Melamed, uma maneira de refletir criticamente a respeito do gesto antropofágico, desenvolvido no início do século XX, característico da cultura brasileira. Devorar, mastigar, despedaçar, deglutir e mixar referências culturais, nacionais e internacionais como procedimentos que viabilizam uma produção brasileira resultante do entrelaçamento de influências. Melamed pergunta: continuamos ainda deglutindo? A Regurgitofagia afirma a deglutição, porém acrescenta uma nova camada ao gesto antropofágico: após deglutir as referências, é preciso vomitá-las, não ainda como obras acabadas, mas para observá-las, selecioná-las, ponderar criticamente o que se quer, de fato redeglutir. Diante dos excessos veiculados pela cultura contemporânea atual, é preciso, não apenas deglutir, mas redeglutir.

No palco, o processo de redeglutição assumia a seguinte configuração: o corpo de Melamed conectava-se ao Pau de Arara, uma máquina concebida pelo artista, em parceria com Alessandra Colassanti, que transformava os sons emitidos pelo público em cargas elétricas descarregadas no corpo do performer. Uma situação de retroalimentação, um feedback que remete diretamente às práticas da tortura por eletrochoques. Neste circuito, impõe-se um conjunto de indagações: quem está torturando quem? Quem é responsável pela tortura, o corpo do ator ou o corpo do público? Regurgitofagia obrigava ator e público a travar um pacto silencioso e tenso, a partir do qual é necessário tomar uma posição crítica no interior do acontecimento cênico. Que atitude se deve ter? Sons, para ver o espetáculo da tortura, ou silêncio, para torná-la apenas uma potencialidade, um vir a ser? Uma radicalização dos limites entre palco e platéia, entre ator e público, onde o monólogo cede lugar ao acordo silencioso entre os agentes da operação.

A pesquisa de linguagem acerca dos limites da participação do público no espetáculo é um aspecto que não se restringe a Regurgitofagia. Na realidade, ela é um elemento transversal da Trilogia. Em Dinheiro Grátis e Homemúsica, Michel Melamed prossegue em sua investigação: no segundo espetáculo da Trilogia, uma série de leilões era proposta ao público, de modo que o processo de conferir valor aos objetos era colocado em primeiro plano. Já em Homemusica, o show musical é o acontecimento a partir do qual o público interage com o artista no palco.

A Trilogia Brasileira de Michel Melamed não é apenas marcada pela investigação  proposta pelo artista quanto aos limites da relação entre o performer e o público. Este eixo investigativo articula-se a outros dois, formando um tripé conceitual que fundamenta a tríade espetacular.  A integração de linguagens artística é outro traço característico dos três espetáculos, em que Melamed propoe uma articulação entre as diversas manifestações artísticas, como o teatro, a performance, a instalação, o vídeo, a tecnologia, a música etc. A motivação em realizar esta contaminação artística reside na proposta de “desestabilizar o olhar do espectador”, idéia regurgitada por Melamed do filósofo francês Jacques Ranciere. Desestabilizar o olhar significaria levar o espectador para regiões de instabilidade, forçando o abandono ao conforto. Tal objetivo conduz ao terceiro elemento do tripé, o compromisso político da Trilogia, traduzido em uma visão da arte como último reduto onde tudo possa (e deva) ser possível.

Os limites das fronteiras, a integração de linguagens, o compromisso político: estes eixos investigativos articulam-se nas três-quatro peças de Michel Melamed de modo a criar situações artísticas onde seja possível afirmar a criatividade do espectador. A Trilogia Brasileira incita, a partir de procedimentos provocativos diversos, o público a exercer uma espécie estranha de liberdade, a partir das múltiplas possibilidades de se apreender os fenômenos. Afinal de contas, um machado não é um machado não é um machado…

Categorias: Notícias. Tags: 1° TEMPO_2009, Intervenção, Michel Melamed, Processos e Teatro.