* Pedro Sprejer, sobre “Yo no soy bonita”, de Angelica Lidell, texto especial para o Tempo_Festival
De tudo fica um pouco. É o que atestam os versos de “Resíduo”, obra-prima de Carlos Drummond de Andrade, a qual vez por outra retorno, na esperança de que os belos versos do poeta de Itabira penetrem o máximo possível na minha mente. Com esse preâmbulo quero desembocar na pergunta: o que fica de uma peça assistida há um ano, no TEMPO FESTIVAL 2012? No caso de Yo no soy bonita, da espanhola Angelica Liddell, ficou o espanto e a sensação de ter vivido momentos intensos, sido exposto a cenas e histórias chocantes e poéticas.
Lembro de chegar à sala de espetáculo do espaço Sergio Porto pouco antes do início da peça, com o recinto já quase cheio. Lembro de estar sentado em boa companhia, olhando para um cenário confuso com coisas dispersas, das quais não me recordo, e, subitamente, reparar que no canto havia um cavalo. Sim, um belo cavalo branco, cercado por um monte de feno, do qual ele se alimentava displicentemente, sem dar a menor bola para a plateia. A cena daquele grande animal sozinho ali no palco, antes do espetáculo começar (ou será que já havia começado?) era intrigante, engraçada, inusitada.
Então, Angelica entrou em cena. Desde o primeiro olhar foi impossível não constatar a força de sua figura, os cabelos negros, o rosto não exatamente bonito, mas de uma intensidade impressionante, o corpo idem. O texto versava sobre o que pareciam ser experiências pessoais da infância e da adolescência de Angelica. Enquanto via a peça, tinha certeza que Angelica havia de fato passado pelos traumas que narrava, dada a força da emoção que transmitia. Tudo aquilo parecia ter sido com ela e mais ninguém. O texto verborrágico parecia vir das suas entranhas.
A frase “Yo no soy bonita” era quase um bordão que ela repetia, uma espécie de auto-flagelo psicológico ali na frente da plateia. E, de fato, era possível imaginar Angelica quando pequena, triste, chorando, se achando feia e esquisita, não exatamente como outras crianças, mas de uma forma mais pesada, tendo uma aguda consciência da sua singularidade e de tudo que isso acarretava naquele momento.
Em um determinado momento o auto-flagelo se materializou. E foi realmente impressionante. Angelica simplesmente pegou um estilete, ou algo do tipo, e passou a fazer pequenos cortes na própria perna, que começou a sangrar, enquanto ela continuava falando, cantando, narrando histórias. O ato foi tão forte que não me recordo se ela estava nua ou vestida naquele momento.
O sangue escorria em filetes finos pela perna branca de Angelica. Acho que muitos na plateia devem ter sentido a aflição que eu senti e questionado os limites daquilo tudo. Mau gosto? Exagero? Talvez um pouco. Mas, e daí? Era forte. E não deixava de haver beleza estética na cena. Pensei em cristo crucificado e no poder purificador daquele gesto aparentemente absurdo, aquele sangue descendo, aquele masoquismo, nas cercanias da loucura.
O texto (do qual, confesso, lembro pouco) se alternava por essas cenas fortes e desafiadoras. O ponto auge do texto era a narração de um abuso sexual que a autora teria sofrido na infância ou pré-adolescência. Aí a presença do cavalo isolado, comendo feno e chicoteando o ar com o rabo, alheio a tudo ali no canto, finalmente fez sentido. Angelica narrou, então, em detalhes como um soldado a molestou enquanto fingia erguê-la para montar em um cavalo igual aquele.
Se de tudo resta um pouco, em Angélica parece ter ficado muito daquela violência (independente de o estupro ter ocorrido ou ter sido imaginado pela menina ou, mesmo, artificialmente criado pela autora). Para mim, tudo ali foi de verdade: o cavalo, o sangue, o trauma. Na minha memória ficou um pouco de Angelica. Sou grato por ter conhecido o trabalho dessa figura esquisita e interessante e compartilhado de sua dor, sua loucura, sua feiúra e sua beleza.