Em janeiro de 2013, Peter Brook, no auge dos seus oitenta e sete anos de idade, estreou em Nova York The Suit (O terno), adaptação teatral do romance do escritor africano Canodoise Daniel “Can” Themba. O espetáculo, na verdade, é o segundo mergulho de Brook no texto de Themba, tendo sido realizada a primeira montagem (Le Costume, em língua francesa) em 1999. Ambientada em pleno apartheid sul-africano, The Suit narra a história de Philemon (William Nadylan) e sua esposa, Matilda (Nonhlanhla Kheswa). O ponto de partida para o encadeamento dos fatos é o adultério, constatado por intermédio de um flagrante de Philemon, de Matilda.
Algo surpreendente no texto de Themba, e que representa adequadamente a sua genialidade, é a reação de Philemon. O marido traído não solicita a separação, nem mesmo repete a trajetória de Otelo. O personagem constata o adultério, não pela observação direta do relacionamento entre Matilda e seu amante (isto fica a cargo da plateia), mas pelo rastro indicial deixado pelo seu concorrente por meio do terno pousado sobre a cadeira. O amante, com isso, fugiu nu, deixando para trás a esposa do outro e também a roupa do corpo. Diante da prova incontestável – afinal, de quem seria aquele terno senão do mancebo? – Philemon promulga um curioso veredicto. O terno deverá ser tratado como uma pessoa: deve ser cuidado, alimentado, posto para dormir etc. A relação de Matilda e Philemon ganha um terceiro elemento: o índice indelével do adultério torna-se presente e inesquecível a cada tarefa do dia. Esta é a condenação de Matilda, em uma criativa vingança arquitetada por Philemon.
Se a opção por um texto escrito por um dissidente morto em 1968 após uma vida fortemente marcada pelo antagonismo ao apartheid sul-africano reforça o já reconhecido interculturalismo brookiano, os elementos cênicos encontrados em The suit, por sua vez, atuam como signos de sua modéstia teatral. O bom e velho tapete ressurge com alguns pares de cadeiras espalhadas pelo palco, uma ou duas araras de roupas, uma mesa quadrada e outros móveis funcionais que servem de apoio, no lado direito do palco, para a performance dos músicos. Neste espaço vazio do Brooklyn Academy of Music (BAM), os elementos cênicos e figurinos criados por Oria Puppo apresentam cores quentes, pontuadas também pela iluminação de Philippe Vialatte. Orquestrados por Brook, tais recursos se transformam em signos de seu essencialismo cênico, a moldura na qual ganha destaque a performance dos atores William Nadylan, Nonhlanhla Kheswa, Jared McNeill, Rikki Henry e dos músicos Arthur Astier, Raphael Chambouvet e David Dupuis.
Assinada por Barney Simon e Mothobi Mutloatse, a adaptação dramatúrgica mantém o caráter narrativo do texto. Há um narrador (McNeill), que não detém, porém, a exclusividade da tarefa. De fato, se a voz narrativa oscila entre McNeill e Nadylan, pode-se afirmar que a encenação traz um olhar masculino – talvez resida aí um dos pontos problemáticos do espetáculo. Pois, rodeada por homens, submetida à enunciação narrativa masculina e, ainda, obrigada a obedecer à vingança criativa do marido, Matilda não se impõe como uma figura feminina que possui as rédeas de seus afetos, suas relações e vontades. Inserida em um mundo falocêntrico – evidente tanto temática quanto formalmente –, Matilda não vê saída a não ser a morte. Antes disso, no entanto, a personagem de Kheswa tenta recuperar a confiança do marido, ao se integrar à vida da comunidade (em, uma vez mais, um recurso típico de feminilização: a integração se dá por meio de reuniões entre esposas e encontros familiares). Isto, contudo, mais sublinha o beco sem saída de Matilda do que lhe apresenta uma alternativa.
Há, no entanto, que se contra-argumentar contra o falocentrismo anunciado. Se não cabe a Matilda a função narrativa, concentra-se nela, mais do que em outros personagens, a tarefa do canto. É pela voz desta personagem que podemos ouvir, por exemplo, músicas como Feeling Good, imortalizada por Nina Simone, e Malaika, canção tradicional da Tanzânia, dedicada, na peça, a todos aqueles que não conseguem realizar seus sonhos. Entre a impossibilidade de realização amorosa (tema da canção africana) e o regozijo neo-romântico da música inglesa, a voz de Kheswa paira sobre os acontecimentos, representando a impossibilidade do aprisionamento. Em outras palavras, aquela africana, submetida ao olhar narrativo masculino, tem na música o meio pelo qual impõe a sua re-existência, jamais absoluta, evanescente. Esta é a saída deste personagem e também do espetáculo.
A atenção dedicada por Brook à música, tanto em The Suit (cuja direção musical é de Franck Krawczyk), como em outros espetáculos recentes, como 11 and 12 (de Amadou Hampâté Bâ, Londres, 2010) e Warum, Warum (que os cariocas puderam ver em 2008), nos permite observar, sob nova luz, a modéstia brookiana. Não à toa, o diretor parece não diferenciar o trabalho de atores e instrumentistas: na aparente simplicidade de um músico tocando o seu instrumento reside toda complexidade encantadora do ser humano, que preenche o espaço vazio de modo invisível e passageiro. De fato, a carpintaria teatral que se observa na peça merece destaque: músicos e atores apresentam, todos, excelentes desempenhos resultantes de um domínio técnico e espiritual invejável. Pode-se dizer, com isso, que assistir a um espetáculo de Brook é estar diante de um concerto musical, seu teatro é música. Sob esta perspectiva, surge a possibilidade de se relevar, inclusive, seu tratamento da questão africana. Fica sem resposta, por exemplo, a pergunta a respeito da escolha do diretor em alternar a história principal com pequenos monólogos que relatam casos do apartheid. A universalidade da música, no entanto, sublinha seu otimismo intercultural – o que não deixa de ser extremamente válido hoje e sempre.
(Este texto compõe o estudo Clássicos, Nova York: música, memória, lugar, cinema, publicado originalmente na edição de março da Revista Questão de Crítica e pode ser lido na íntegra aqui)