Nos últimos dias do Festival de Curitiba, dois espetáculos surpreenderam o público curitibano com humor prussiano e a delicadeza abjeta de Jean Genet.
Integrando a Sexta Mostra Novos Repertórios, Família LovBorgs: os russos transcomunicadores é um espetáculo patafísico dirigido por André Abujamra. Originários da Prússia, os setes irmãos LovBorgs são cientistas imaginários, possuindo, cada um, uma habilidade extraordinária (como a transcomunicação com os mortos ou a manipulação de instrumentos musicais raros). Mas nenhuma capacidade é tão desenvolvida quanto a habilidade musical dos LovBorgs.
De fato, a estrutura do espetáculo alterna números musicais com histórias nonsense sobre os integrantes desta divertida família. Os sete irmãos, que remetem diretamente aos sete anões, tem na professora multi-especialista intepretada por Greice Barros a sua Branca de Neve. Cabe a Barros mediar a comunicação entre os prussianos e a plateia, arrancando bons risos em situações como aquela em que a catedrática procura, em vão, o texto a ser falado. A excelência musical dos LovBorgs entremeada por histórias cômicas fazem deste show teatral uma divertida experiência capaz de agradar diversas faixas de público, incluindo aí as crianças.
Livremente inspirado no livro Diário de um Ladrão, de Jean Genet, Diário de Genet estreou em Curitiba com direção de Djalma Thurler e atuação de Duda Woyda e Rafael Medrado. Terceira parte da Trilogia sobre o Cárcere, o espetáculo se revela como uma reflexão cênica a respeito das normas e convenções sociais que regem o nosso comportamento. Neste sentido, Genet é um oportuno ponto de partida, pois o olhar do autor francês é capaz de enxergar delicadeza e beleza no mundo da marginalidade e do crime, invertendo, portanto, a perspectiva valorativa mais usual.
Quem espera, no entanto, uma adaptação do livro, recheada de situações pornográficas, vai se decepcionar. De modo surpreendente, Thurler soube driblar com mestria os esteriótipos de obscenidade que se espera quando se fala em Genet. De outro lado, o espetáculo conta também com fragmentos de outras obras do autor, como As Criadas, bem como histórias narradas por Ruth Escobar, por ocasião da visita de Genet ao Brasil.
O resultado atingido pela ATeliê voadOR Companhia de Teatro faz juz à delicadeza genetiana. Focado na carpintaria teatral de Medrado e Woyda, o espetáculo é composto por cenas em que, por vezes, eles narram fragmentos das memórias de Genet; por vezes, ganham primeiro plano o movimento e a relação entre seus corpos, fugazes a qualquer espécie estável de classificação. O foco no trabalho desta excelente dupla de atores parece ser o grande trunfo da peça: a sintonia existente entre eles confere uma dinâmica na qual os elementos da cena ganham (e perdem) significados constantemente. Neste sentido, os papéis em branco, que compõem boa parte do cenário assinado por José Dias, funcionam como metáfora deste espaço vazio que é preenchido (corporal e simbolicamente), a cada cena, pelos intérpretes. Esta é a política do teatro: sua capacidade de re-significar, revelando, com isso, a ficcionalidade das convenções, estas prisões invisíveis que são apenas uma forma de se entender o mundo; certamente existem outras. Genet sabia disso. E a ATeliê voadOR Companhia de Teatro também.