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TEMPO EM CURITIBA 2013: MARAVILHOSO

Integrando o conjunto de estreias nacionais do Festival de Curitiba 2013, Maravilhoso, com direção de Inez Vianna e dramaturgia de Diogo Liberano, parte da difícil tarefa de conferir profundidade à imagem plana da cidade do Rio de Janeiro que figura em seus cartões postais. A dificuldade da empreitada está associada à complexidade da questão, cuja dimensão não é apenas econômica, mas social, política e, principalmente, cultural. Em meio aos megaeventos e às remoções, aos processos de gentrificação e às reformas e inúmeros debates que caracterizam o cenário carioca atual, pode-se dizer com plena certeza de que não haveria melhor ocasião para o questionamento proposto por Maravilhoso.

O título do espetáculo refere-se tanto à cidade quanto ao nome do protagonista interpretado por Paulo Verlings. Maravilhoso, sem vislumbrar saída melhor para a situação miserável de sua família formada por sua mulher (Carolina Pismel) e filho, aceita o emprego como secretário de um influente bicheiro, diretor de uma escola de samba (Márcio Machado). Um casal formado por uma jovem rica que deseja ser destaque da Escola de Samba (interpretada magistralmente por Debora Lamm) e seu ex-marido jornalista (Felipe Abib), movido pelo desejo de expor a corrupção que estrutura o carnaval, completa o quadro de personagens.

O arco dramático de Maravilhoso, partindo da miséria, passando pelo sucesso afetado do dinheiro fácil que o conduz à morte, somado à breve descrição dos personagens, dizem muito a respeito das escolhas dramatúrgicas do espetáculo. Pois, na tentativa de tornar a cidade do Rio de Janeiro protagonista da cena, Diogo Liberano optou pela definição de cinco tipos cariocas (além do candidato à malandro, tem-se a favelada, a  “filhinha de papai”, o jornalista-dono-da-verdade e, por fim, a bicha-bicheiro). Os dois recursos, a tipificação e a trajetória dramática de Maravilhoso são procedimentos que estabelecem de imediato um diálogo entre esta peça e os clássicos brasileiros Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, e Roda Viva, de Chico Buarque.


É bem curiosa a semelhança que o texto de Liberano guarda com a peça de Guarnieri, de 1958. De fato, os protagonistas Maravilhoso e Tião possuem o mesmo ponto de partida: um filho ao qual não conseguem sustentar. Em Eles não usam Black-Tie, o jovem se vê obrigado a romper com o seu corpo social, ao furar a greve realizada por seus companheiros. Em Maravilhoso, já não se presta contas em relação à movimentos de classe e o desfile de carnaval substitui o movimento operário como eixo central da peça. A semelhança entre as duas peças é de tal ordem que o parágrafo abaixo, retirado da análise realizada por Iná Camargo Costa para o texto Guarnieri, é revelador da estrutura dramática sobre a qual se desenvolve o texto de Liberano:

“Do ponto de vista formal, a peça é o drama de um jovem trabalhador em conflito com a situação em que vive. Ele está às voltas com o desejo e a necessidade urgente de se casar e foi posto diante de um dilema que vai decidir a sua vida: aderir à sua classe participando da greve ou recusá-la, buscando individualmente uma saída que consiste em apostar em seu progresso econômico individual.”

Uma outra de imagem de Maravilhoso pode ser encontrada em Roda Viva, por meio do personagem Benedito e sua transformação, sob a cadência da indústria cultural e da sociedade de consumo, no ídolo pop Ben Silver. Percebe-se neste caso que a proximidade não está apenas no tratamento dado ao protagonista, mas, inclusive, no contexto no qual este se insere. Pois, uma das questões que Maravilhoso se propõe a atacar é a indústria carnavalesca. Mas, se Chico Buarque escreve um texto no qual o protagonista pode ser encarado com um duplo do autor (afinal, é quase impossível pensar na ascenção de Ben sem levar em consideração o sucesso de Chico), em Maravilhoso, tal aproximação entre o autor e seu tema não se faz presente.

A relação aqui proposta entre os textos de Liberano, Guarnieri e Buarque parece revelar uma ausência de ousadia formal em Maravilhoso, a despeito da premente questão temática. Pois Liberano parece lançar mão da estrutura convencional do drama, sem conferir uma palheta de cores aos seus personagens que os deslocaria da planaridade do tipo. Nesse sentido, a proposta de gerar profundidade à imagem chapada da Cidade Maravilhosa encontra um entrave interno logo de início, pois como criar a tridimensionalidade contraditória do Rio de Janeiro por meio de uma estrutura que aposta, ainda, em uma trama plana?

O Rio de Janeiro foi também personagem de um outro espetáculo, Cara de Cavalo, de Marco André Nunes e Pedro Kosovski. Nele, a relação entre arte e violência era tematizada por meio de uma estrutura cênico-dramatúrgica que abordava as inúmeras faces da ficção (passando, inclusive, pela manipulação jornalística e pela pausterização da indústria do entretenimento), bem como a dificuldade em se abordar o tema, levando em conta todas as suas contradições. Num determinado momento do espetáculo, o personagem de Ricardo Kosovski relembra o dilema comentado por Graciliano Ramos em uma de suas cartas à Carlos Drummond de Andrade. Na correspondência, o autor de Vidas Secas queixava-se da miséria brasileira ao mesmo tempo em que reconhecia que, se não fosse por ela, talvez a sua arte não existisse. É este o drama da miséria e da cultura – talvez o único possível ainda hoje – que parece não ter lugar em Maravilhoso.

Categorias: Notícias. Tags: Carlos Drummond de Andrade, Carolina Pismel, carrossel, Chico Buarque, Diogo Liberano, Gianfrancesco Guarnieri, Graciliano Ramos, Inez Vianna, Márcio Machado, Marco André Nunes, Paulo Verlings e Pedro Kosovski.