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PERFORMANCES INVOLUNTÁRIAS E MANIFESTAÇÕES TEATRAIS EM ATACAMA

San Pedro do Atacama é a cidade mais próxima daquele que é considerado um dos desertos mais áridos do mundo. Localizado no norte do Chile, o Atacama é hoje rota de turistas de todas as partes, principalmente para aqueles que querem ter contato com uma realidade diferente da encontrada nos grandes centros urbanos. Esse também foi o meu caso.

Fui para o Atacama para descobrir o deserto, uma geografia conhecida por mim somente de filmes, livros e desenhos. Queria entender – na pele – porque tantas narrativas, religiosas ou não, fatuais ou ficcionais, de caráter místico ou lendário, têm o deserto como cenário. Moisés conduziu o povo judeu pelo deserto durante 40 anos; Jesus foi para o deserto permanecendo lá por 40 dias; muitos dos contos árabes e orientais, como Laila e Majnun, se passam no deserto; há também filmes como Lawrence da Arábia, Thelma & Louise, Paris, Texas e também ficções científicas como Guerra nas Estrelas, Mad Max e Duna. O deserto, de muitas formas, desperta algo de ancestral no imaginário humano.


Panorama de Vada Machuca – na rua, só turistas

Para chegar em San Pedro, é preciso voar de Santiago para Calama ou Antofagasta, sendo
que a primeira cidade é a mais perto de San Pedro que a segunda. Assim que descemos do
avião (eu e Myle, minha mulher), tive uma primeira sensação extasiante, já passavam das
dezoito horas, mas o sol parecia à pino. O pequeno aeroporto é rodeado de um horizonte
poeirento e empedrado, que só termina onde começam as cordilheiras. Sim, eu estava no
deserto.

A viagem de Calama para San Pedro é normalmente feita de van, e durante uma hora e meia você continua tendo contato com a mesma paisagem quente, extensa, iluminada e árida. Chegamos ao hotel Don Sebastian quase às nove, que é quando a noite se inicia para os atacameños. Fizemos o check-in, tomamos banho e saímos para comer. E neste momento, confesso que tive uma certa decepção. A rua principal de San Pedro do Atacama chama-se Caracoles, é uma rua só para pedestres, peatonal, como dizem. Acontece que essa é uma rua turística, repleta de lojas de souvenires, restaurantes e agências de passeios. Parecia que eu estava na rua das Pedras, em Búzios, ou na Vila do Abraão, em Ilha Grande, ou em qualquer outro centro urbano de alguma cidadezinha turística. Assim que pisamos em Caracoles, fomos abordados por um rapaz de uma agência de passeios. Eu já tinha uma lista das principais atrações de Atacama, que me foi passada por um amigo, Jorge Caetano, um entusiasta do lugar. Depois que o rapaz apresentou seu cardápio de opções, dissemos que iríamos primeiro comer, pois havíamos acabado de chegar. O rapaz então nos disse que ele só tinha mais três vagas para o passeio do dia seguinte e que a agência iria fechar às 23:30 – já eram 22h:30. Ficamos meio apreensivos, mas resolvemos comer primeiro e voltar à agência depois.

O restaurante que no foi indicado por um atendente do hotel e pelo rapaz dos passeios,
Adobe, é um dos mais caros e turísticos do lugar. E mais uma vez a sensação de estar numa cidade trivial voltou forte. Enquanto nosso pedido não chegava, resolvi ir até uma agência de tours indicada por Jorge Caetano, a Adventure, que fica bem perto do restaurante. Lá eu descobri que existem várias opções de passeios, com horários variados e em dias variados, e que eu não deveria me preocupar em comer correndo para pegar a primeira agência aberta. Comemos uma salada grega (!), um mix de carnes com batatas fritas (!) e tomamos uma cerveja atacameña (essa, sim, com um sabor bastante peculiar). Ao voltarmos para o hotel, vimos que a primeira agência continuava aberta – e já passava da meia-noite!

No dia seguinte, fomos abordados por uma moça de uma outra agência. Como os preços
eram muito mais baratos que a Adventure, entramos para negociar com Jesus, o dono.
Acabamos fechando um pacote de quatro passeios. Não há como você escapar disso, é
praticamente impossível conhecer todos os atrativos naturais de Atacama sem contratar
uma agência (depois descobrimos que pelo menos dois desses passeios podem ser feitos de bicicleta, mas é bem árduo e demorado chegar nos lugares de visitação), a não ser que você esteja de carro e já conheça a região – ou esteja acompanhado de um local.

Perguntamos a Jesus se era possível conhecer um pueblo, porque queríamos ter contato
com a cultura atacameña de fato. Jesus nos disse que todos os pueblos já estavam
adaptados para os turistas. Perguntamos, então, onde havia um lugar para dançar
música local e ele nos disse que não havia isso em San Pedro, porque, por lei, todos os
estabelecimentos fechavam à uma da manhã. A festa local era o carnaval que aconteceria a partir do dia 9 de fevereiro.

Caminhando de dia pela cidade, pudemos observar melhor – e apreciar – a geografia
e arquitetura do lugar. Não há nenhum edifício em San Pedro do Atacama, todas as
construções, casas, lojas, hotéis, restaurantes, são térreos. E o mais incrível: ao menos
exteriormente, todas as construções, das mais simples às mais luxuosas, são feitas do
mesmo material: pedras, barro, palha e madeira. A junção dessas duas características – horizontalidade e matéria prima local – conferem a San Pedro de Atacama uma aura preservada de povoado, como se o tempo ali tivesse parado, ou ao menos andasse muitíssimo mais lento. Conferem, por assim dizer, um aspecto de cenário. (a rua principal, que como já disse é fechada para veículos motorizados, e a igreja do século XVI contribuem para essa impressão).


De bicicleta pelo Valle de La Muerte

Em nosso segundo dia, alugamos duas bicicletas e fomos visitar as ruínas de uma fortaleza do século XII conhecida como Pukará de Quitor. Localizada num pequeno morro, a antiga fortaleza nos força a tentar reconstituir imaginariamente não só a edificação em si, como também a sua utilização. Toda feita de pedras amontoadas e unidas por uma argamassa de barro – como se vê em outros monumentos mundo afora, entre os quais a cidade de Machu Picchu – Quitor foi palco de pelo menos duas grandes conquistas, a dos incas sobre o povo atacameño, e a dos espanhóis sobre os incas. Três placas de madeiras narram a história do lugar e um pequeno museu mostra um pouco o modo de vida dos antigos habitantes (utensílios e alimentos, por exemplo).

No dia seguinte, também alugamos bicicletas e fomos para o Valle de La Muerte. Como era uma da tarde, não havia praticamente ninguém indo ou voltando do lugar (quem a não ser os inocentes e desavisados iria passear em pleno deserto a essa hora?). Saindo da estrada principal, pega-se uma estrada de barro e pedras, sempre subindo, até a entrada do vale propriamente dito. Em frente há uma grande duna de areia; à esquerda há uma estrada mais estreita que te leva para dentro do vale, como uma picada que te leva para dentro da floresta. Fora alguns trechos de areia, conseguimos ir montados em nossas bicicletas.

Como ficamos sabendo mais tarde, o Valle de La Muerte é assim chamado porque nele não há nenhuma forma de vida, nem animal, nem vegetal. A sua geografia é feita de morros de diferentes tamanhos, de pedra, areia ou barro – a cor predominante do lugar. Conforme fomos avançando vale adentro, fui me sentindo cada vez mais isolado do mundo, como se estive em outro planeta (ah, sim, o vale é conhecido também como Valle Del Marte). Em dado momento, fui pego pela emoção. Comecei a se invadido por um profundo sentimento de beleza, do belo, como se estivesse diante de uma obra de arte. E saber que aquele sentimento estava sendo causado por pedras e areia – e não por gente, bicho ou flor – acrescia uma nota de singularidade ao momento. O belo que advinha da não-vida (muerte, Marte), a emoção provocada pelo cenário bruto e insensível do deserto.

Naquele mesmo dia, fomos para o nosso segundo passeio (o primeiro tinha sido para
as lagunas Cejar). O tour era para o Valle de La Luna. Luiz, o guia, se apresentou de um jeito engraçado – “Mi nombre es Luiz y hoy voy a ser su guía, su abogado, su médico, su psicólogo” – e logo conquistou a simpatia do grupo. Percebi que esse era seu “personagem” e que sua atuação era construída por piadas que Luiz inteligentemente salpicava ao longo das explicações sobre os pontos de visitação.

Antes de chegar ao Valle de La Luna, fomos levados a dois mirantes e ao Valle de La Muerte, o mesmo que fomos de bicicleta, mas por um outro caminho, o que levava a uma grande duna de areia onde é praticado o sanboarding (que consiste basicamente em deslizar do alto da duna numa prancha de madeira). Percebemos que se tivéssemos seguido pelo caminho em que estávamos com as bicicletas, teríamos chegado àquela duna. Celebrei o fato não ocorrido (voltamos de um determinado trecho), porque muito provavelmente teríamos nos deparado com aquele bando de pessoas e eu teria perdido o meu pequeno momento “sagrado” com o deserto.


Geysers Del Tatio – cenário de ficção científica

Em nosso último passeio, fomos para os Geysers Del Tatio, um vasto campo com gêiseres em pleno funcionamento onde você também se sente em outro planeta. Esse impressão já tinha acontecido no Valle de La Muerte e no Valle de La Luna. Mas o que eu sei sobre outros planetas? Evidentemente eu já vi fotos da Lua, de Marte e de outros astros do nosso sistema solar em livros, revistas e pela televisão. Entretanto, a associação que eu fiz desses lugares com outros planetas vem da minha memória ficcional, ou seja, das imagens que guardo, sobretudo, de filmes e desenhos (animados ou em quadrinhos). Dessa vez era eu quem estava criando cenários.

Depois do campo de gêiseres, fomos levados para um pueblo chamado Vado Machuca, que, segundo o guia (dessa ver era outro, Jesus, e que não era o dono da agência) possui cerca de 40 famílias vivendo lá. Machuca é uma pequena comunidade formada por uma vila, uma igreja e uma lojinha em que são vendidos quesadillas de queijo de cabra. Quando a van estacionou, já havia vários turistas no local disputando as quesadillas e o espetinho de carne de lhama que eram assados e vendidos na única rua do vilarejo. Caminhamos por esta rua até chegar à igreja e, durante este trajeto, Myle me perguntou se aquele lugar era realmente habitado ou se só estava ali para servir de atração turística. De fato, as casas pareciam vazias, pois não havia nenhuma movimentação dentro ou fora delas. As únicas pessoas que vimos que pareciam ser locais eram o vendedor de espetinhos, as mulheres que estavam vendendo as quesadillas, um senhor que estava sentado no interior da igreja – e que parecia guardá-la – e um operário que estava trabalhando na construção de um galpão que serviria para abrigar uma futura feira para venda de artesanatos. O que me deu a certeza do contrário foi ter visto placa de bateria solar nos tetos das casas (não acho que estariam ali se não houvesse quem as utilizar) e um cartaz dizendo que por ali funcionava um albergue para os viajantes. Mas me pareceu óbvio que Machuca existe em função dos turistas.


Desfile de blocos de carnaval de Atacama – em volta, muitos turistas

Deixamos o sábado para comprar regalitos e conhecer um pouco mais a cidade de San
Pedro, pois de fato pouco passeamos por ela. Estávamos tomando um café ao lado da
prefeitura quando fomos surpreendidos por um desfile em que alguns homens, mulheres
e crianças vestidos de vermelho e azul saltavam e dançavam rodando matracas. Uma
pequena banda formada de percussão e metais acompanhava o grupo, que seguia em
direção à igreja. Como eu sabia que o carnaval estava perto, imaginei que o desfile era
um anúncio da festa, ou algo assim. Enquanto fotografava um senhor bem velhinho que
observava atentamente a criança mais nova do desfile, ouvi uma outra música vindo ao
longe. Tratava-se de outro bloco vindo na mesma direção. Atrás desse outro bloco vieram
outros e então me dei conta de que aquilo era um desfile de pré-carnaval. Cada bloco tinha suas próprias fantasias, sua própria banda, sua própria música e sua própria coreografia. Mas dava pra ver que todos os integrantes de todos os blocos eram atacameños. Eu tentava fazer minhas fotos e vídeos focalizando somente os participantes do desfile e não os turistas que, assim como eu, faziam seus registros. Mas era impossível, porque eles eram muitos. De repente, olhei para o lado e vi uma mulher com sua câmera apontada para mim. Olhei para trás para ver se ela estava fotografando – ou filmando – alguma outra coisa, mas eu estava em frente a uma parede branca. Direcionei minha câmera para ela. Sorrimos um para o outro. Talvez, assim como eu, ela tenha percebido que também era personagem daquela grande encenação.

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