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TEMPO EM NEW YORK #1: MITOLOGIAS REINVENTADAS

Em janeiro de 2013, em meio ao inverno generoso de New York, dois importantes festivais de teatro tratam de aquecer o público com espetáculos de diversos lugares do mundo e suas propostas originais e cativantes.

O Under The Radar Festival (UTR), que acontece desde 2006 no Public Theatre – um dos históricos teatros da concrete jungle norte-americana – leva ao East Village cerca de 15 espetáculos nacionais e internacionais. Na amostra, estão incluídos um acerto de contas entre Hitler e Ganesha, da companhia australiana Back to Back Theatre, e uma versão iraniana de Hamlet. Organizado pelo Performance Space 122, o festival de inverno COIL 2013 traz uma seleção considerável de espetáculos, com direito a recentes criações de clássicos performers americanos, como Ruff, de Peggy Shaw. Empreitadas inusitadas ficam por conta de artistas como Kristen Kosmas, com seu There There, que, para Claudia La Rocco do New York Times, é um nocaute cênico encharcado de linguagem, sendo uma ótima oportunidade para começar o ano teatral de 2013.

A estreia do espetáculo australiano Ganesh Versus the Third Reich foi um dos destaques do primeiro dia do UTR 2013. O mote para a jornada épica assinada por Bruce Gladwin é o seguinte: à Ganesha, um dos mais ilustres semi-deuses hindus, é atribuída a tarefa de recuperar a suástica, o símbolo que aparece originalmente nos clássicos épicos em sânscrito Ramayana e Mahabharata e fora apropriado pelos nazistas. Tudo poderia sair como um história de ação qualquer, com o herói tendo que vencer todos os obstáculos para resgatar o que lhe foi tomado. No entanto, e este é um dos grandes trunfos de Ganesh, aquilo que deve ser recuperado não é um objeto, mas sim um signo. Como salvar algo que não é uma matéria (uma substância), mas uma criação gráfica a quem os humanos atribuem distintos significados?

A aventura começa com a invenção da verdade. Logo no início do espetáculo, um belo ator seminu, amparado pela caixa cênica transformada em teatro de sombras, situa a ação: em tempos pré-históricos, anteriores à invenção da ciência e da escrita, o homem lançou mão de símbolos para suprimir o vazio existencial diante da morte. É deste período que surge a suástica, forma gráfica inventada pelos Hindus para representar o ser. Tempo vai, tempo vem, às marcações gráficas produzidas pelos seres humanos é atribuída a força da verdade: surge a religião. Os significados passam a ser normativos: neste caminho, religião e fascismo aparecem muitas vezes de mão dadas.

Ganesha, tal como o diálogo de Hamlet com o fantasma de seu pai, recebe então a visita de sua mãe, que lhe solicita a recuperação do significado original do símbolo. Ora, isto implica em uma viagem do Deus à Alemanha Nazista e em um confronto direto com Hitler. Engana-se quem pensa que a narrativa do espetáculo se reduz à “vingança” de Ganesha. Na realidade, a jornada épica é entremeada pelo seu próprio processo de construção. Isto é, o público assiste ao desenvolvimento paralelo de duas histórias que se alternam: a busca de Ganesha e o processo de construção da encenação desta aventura. O palco, desse modo, revela duas camadas ficcionais: os atores interpretando a si mesmos em seu processo criativo de um épico contemporâneo.

Uma especiaria deve ser acrescentada neste momento: a companhia Back to Back Theatre, criada na Austrália em 1987, é composta por um grupo de atores que apresentam deficiências mentais (intellectual disabilities). Algo que se aproxima mais da pesquisa de linguagem do primeiro Bob Wilson em Deafman Glance (1971) e menos dos polêmicos espetáculos do italiano Pippo Delbono (em especial Guerra, 1998, e La Menzogna, 2009).

Quando atores com deficiências mentais interpretam a si mesmos no palco, naturalmente a discussão a respeito dos padrões de normalidade vem à tona. Pode-se dizer que Ganesh Versus the Third Reich apresenta, além da disputa entre nazistas e hindus, uma outra luta: normais versus deficientes. Tal antagonismo é a chave para as cenas de ensaio, onde o diretor (o belo homem seminu comentado acima, o único que não apresenta – aparentemente – nenhuma deficiência) representa um pólo, enquanto que os outros quatro atores (todos apresentando algum grau de deficiência) atuam do outro lado. Bruce Gladwin soube, no entanto, utilizar o jogo teatral para driblar com mestria o antagonismo melodramático. Os singulares performers da companhia australiana, além de apresentarem sofisticada eficiência cênica, revelam-se em toda a sua humanidade tanto em cenas cômicas quanto as mais conflituosas. São eles também que interpretam os protagonistas do épico teatral, deslocando-se, portanto, de suas marginalidades.

Além disso, ao longo do espetáculo, a figura do diretor (que também representa, na trama épica, Vishnu, a voz da consciência de Ganesha) é apresentada como uma espécie de psicólogo-herói encarnado em um Metteur en scène. Desse modo, qualquer conflito criado pelos outros integrantes da companhia é logo neutralizado por esta personagem, que a tudo tende enxergar o lado positivo e otimista. Movido por um desejo de concretização de sua imaginação, esta figura tenta impor o seu modo de realização teatral em tudo, inclusive na mais irrepresentável das situações: a morte em cena. Uma vez que seus parceiros são deficientes (isto é, não morrem conforme a maneira ditada pelo diretor), frusta-se o projeto da morte ideal: neste momento, explode na cena toda a fúria nazista do otimista.

É neste mesmo momento que Ganesha finalmente encontra Hitler e lhe solicita a devolução do símbolo hindu-nazista. Após uma rápida discussão, o líder alemão retira a suástica do braço e dá ao deus indiano. Guess What? O símbolo, todavia, é facilmente passível de reprodução e, se há uma cópia com Ganesha, outra fica no braço de Hitler. Sendo assim, se houve a recuperação do signo, houve a manutenção do mesmo. A resposta para a pergunta inicial – É possível recuperar o significado original? – surge em formato de outra indagação: É possível haver original?

As duas tramas – o ensaio do espetáculo e o épico propriamente dito – atuam como camadas de uma mesma narrativa na qual as fronteiras entre realidade e ficção mostram-se embaçadas. Nesse sentido, a estrutura cênica criada pela Back to Back revela estreita adequação à narrativa em espiral, ao apostar em simples cortinas translúcidas (lembram aquelas de banheiro) que, sobrepostas, criam belos e fantasmagóricos efeitos de profundidade no palco. Jogos de escalas e proporções são, assim, grandes trunfos nesta complexa disputa onde homens com cabeça de elefante e outros deficientes dão um tom de extraordinária normalidade.

 

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