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Reflexão sobre autobiografia, arte e violência na cena contemporânea

‘’Faço uso da violência poética para me defender da violência real’’

O TEMPO_FESTIVAL teve a sua estreia numa energia bastante intensa com a apresentação do solo performance Yo no soy bonita da artista espanhola Angélica Liddell nos dias 05 e 06 de outubro no Espaço Cultural Sérgio Porto. Em função do evento, a Companhia Atra Bilis fez a sua primeira vinda à cidade do Rio de Janeiro, deixando sua marca por um tipo específico de vigor de experimentação teatral que estamos pouco acostumados.
Este tipo de trabalho é considerado pela própria artista como um ‘’ato artístico de desobediência’’ em relação à sociedade. Yo no soy bonita apresenta como proposta conceitual a abordagem da violência de gênero, tratando principalmente sobre o tema da misoginia. No começo do espetáculo, a atriz conta que durante a sua infância, ela sofreu diversos tipos de violência por ser criança e mulher. Como exemplo, ela relata que aos noves anos, um amigo da família comentou para seu pai que sua filha era uma ‘’puta’’. Também relata o acontecimento de quando estava passeando com duas amigas e pediram que um soldado pudesse ajudar que elas subissem num cavalo de passeio. O soldado aproveitou o pretexto da situação para passar a mão na região da vagina das meninas. Através desses e de outros relatos, Angélica Liddell encontra na sua infância a origem das suas experienciais pessoais relacionadas à violência e à misoginia. Por isso, ela concebeu este espetáculo para fazer uso do seu ofício artístico como forma de estabelecer um canal de comunicação sobre a dificuldade de defesa de uma criança que está inserida numa sociedade patriarcal.
Nesse sentido, a performer resgata suas memórias para transformá-las em elementos estéticos e plásticos a partir da poética teatral. Logo que entramos na sala de apresentação, somos impactados pela ambientação cênica. Observamos uma disposição dos elementos e objetos cenográficos numa disposição que faz um aproveitamento do espaço horizontal do palco. Da esquerda para a direita, vemos uma série de colchões empilhados um sobre o outro, um coelho empanado, uma cadeira, garrafas de cerveja, uma mesa com fogão elétrico e um cavalo branco real. A proposta conceitual do solo aposta com viés intenso numa linguagem visual. Dessa maneira, a cena se aproxima da imagem de uma pintura viva. Para isso vale lembrar que com frequência Angélica Liddell costuma assinar a cenografia e indumentária de seus trabalhos. É nítida a ligação direta que a artista possui com as artes visuais, o que traz para a cena um caráter de instalação.
Ao longo do solo, vemos a performer oferecer o seu próprio corpo como o objeto de questionamento, o que possibilita inverter os papéis que são impostos às mulheres e acabar com a predominância da humilhação. Ela castiga o seu próprio corpo como forma de desobediência por meio de ações psicofísicas de autolesão, o que gera uma poética da violência social em relação à misoginia. Para isso, a atriz não trabalha sobre o nível da representação. Ela desconstrói qualquer possibilidade de fingimento. Seu trabalho é performático na medida em que ela trabalha sobre a instalação da ação presente ao longo de toda a experiência do solo. O espetáculo começa com seis garrafas de cervejas cheias. Ela atua enquanto bebe em cena. Atua ao mesmo tempo em que o álcool produz efeito em seu corpo. Mantém um cavalo real em cena. Interage com o cavalo real que por sua vez não possui o controle de sua atuação e reage através de seus instintos ao que acontece em seu redor. Ela corta as suas pernas com uma pequena gilete. O sangue real sai do seu corpo. Ela limpa o sangue com um pedaço de pão para logo em seguida comê-lo e devolver o sangue ao corpo. Ela ferve uma quantidade de leite, espera que o líquido entre em estado fervente para colocar a sua mão em contato com a alta temperatura do leite. Fica nua e coloca um buquê de flores entre suas nádegas à vista do público. Nesse sentido, todo o tempo a performer trabalha sobre níveis de exposição na medida em que há uma intensa articulação entre a arte e a vida.
Em termos de recepção, Yo no soy bonita coloca o espectador num lugar de compartilhamento de memórias autobiográficas como possibilidade de compreensão mais sensível da natureza humana. Como toda arte de provocação, este tipo de experiência artística está direcionado para um lugar de recepção que vai além das questões de empatia, gosto e afinidade. Muitos entendem a provocação como aquilo que deve causar o choque, enquanto que o solo está buscando justamente um olhar mais atento para que uma experiência pessoal se transforme num conhecimento cultural, político e social. Por outro lado, a relação com as artes plásticas nos leva a pensar que estamos assistindo a uma pintura viva que se rompe gradualmente diante de nós, espalhando seus cacos de vidros pelo espaço. No início do espetáculo, a atriz diz ‘’Eu não quero que vocês me queiram’’; e no final ela termina a apresentação do lado de fora da sala sem receber os aplausos do público. Ela em nenhum momento busca a contemplação. A intenção da artista se direciona mais no sentido de instalar um acontecimento presente que provoque estímulos na imaginação futura do espectador.
As memórias são despertas do sono traumático da infância e ganham ressonância na atualização do instante, do aqui e do agora. Angélica Liddell opta pela explicitação da violência ao invés da sugestão. Ela não faz contornos para falar da questão que mobilizou a feitura do solo. O seu discurso é direto, intenso e com uma frequência vibrante. A poética teatral se desdobra sobre a potência da crueldade. Romper os limites do pudor é o caminho para aprofundar os sentimentos da miséria humana. Assistir ao espetáculo nos faz pensar que a beleza não é aquilo que é imposto pela sociedade. Ao invés disso, a beleza é resultante do ato de desobediência em relação aos padrões já estabelecidos.

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