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O OUTRO, NA RUA

[por Fabrício Belsoff*]

Partindo da leitura dos ensaios de André Carreira e Jussara Trindade, e da experiência de ter assistido e participado da discussão em torno da criação do espetáculo “Otro” do Coletivo Improviso, escrevo esse texto afim de discutir a noção de “teatro de invasão” e as relações que o mesmo estabelece com o espetáculo de palco escolhido, buscando encontrar os pontos de convergência quanto às técnicas de representação utilizadas.

Para isso, começo explicando como a noção de “teatro de invasão” é definida por André Carreira, e quais são suas características principais; levando em consideração a maneira como o termo é utilizado por Jussara em seus ensaio.

André Carreira propõe redimensionar a noção de teatro de rua e refletir sobre um “teatro de invasão” que descobre “nas regras de funcionamento da cidade sua tessitura dramatúrgica”. A tarefa chave, como explica Jussara, é refletir sobre o potencial da cidade, não apenas como cenografia, mas como dramaturgia, o que pode parecer um pouco óbivio, a primeira vista, mas tal diferença surge de uma nova possibilidade de se pensar o processo criativo de um espetáculo que acontece nas ruas. Os artistas que estiverem envolvidos em um teatro de invasão, precisam repensar sua maneira de trabalhar a partir de algumas premissas. Uma delas é a proposição de que a cidade e seus fluxos são os elementos básicos para a criação da montagem.

[Otro, de Enrique Diaz e Cristina Moura]

Mas o que seriam estas “regras de funcionamento da cidade”, onde se encontram as vozes que compõe a “tessitura dramatúrgica” desse teatro? Segundo Carreira, é a partir da experiência no ambiente da cidade que se descobrem os procedimentos cênicos de montagem de um teatro de invasão.

O “ambiente” da cidade é um tecido relacional cuja trama é formada por elementos físicos (projeto de urbanismo e paisagismo, plano viário, arquitetura, etc) e pelo fluxo dos sujeitos que a fazem e refazem. Como este “ambiente” é mutante, então o teatro que invade esse espaço precisa ser entendido sengundo outros critérios, que não podem mais ser relativos ao teatro convencional, mas sim a uma perspectiva que tenha a flexibilidade e adaptabilidade como sua principal marca.

O que difere os procedimentos cênicos do teatro de invasão de outros mais tradicionais, (do espetáculo de palco, por exemplo) é o fato de colocarem no centro do seu processo de criação a percepção da cidade como organismo arquitetônico e cultural, cuja fala deve ser lida como elemento dramartúrgico. Isso implica em não considerar apenas o plano temático sugerido pela cidade, mas sim, através do trabalho do ator, que passa a ter que interagir com o espaço ao invés de usá-lo apenas, descobrir as “circustâncias dadas” pela cidade, que podem ser utilizadas para moldar a montagem. Trata-se de um processo criativo que surge da experimentação da cidade e que não impõe as regras do teatro mas, que se constrói a partir das sugestões do fluxo da cidade. “Paradoxalmente, o teatro de invasão – que pretende irromper na cidade –, só será realmente invasivo se si deixar penetrar pelas dinânimicas da cidade. Se aceitar a cidade em suas múltiplas facetas, como elemento constituinte do acontecimento teatral […] Esse teatro deverá descobrir quais são as formas de dialogar com os ruídos, falas, imagens, volumes e as mais diversas expressões da cidade […] Um teatro que invade deverá ter a capacidade de incorporar a cidade em seu discurso […] Invadir é produzir fraturas momentâneas nos fluxos da cidade, e deste lugar propor também novas possibilidades para a cidade […] a partir da compreensão desta com um lugar socio-cultural no qual todo cidadão pode propor novos ritmos, novos fluxos e novos sentidos.” (Carreira)

As formas de diálogo entre a cena e cidade são inúmeras e só podem ser determinadas pela própria dinâmica das encenações que forem criadas da leitura atenta da cidade como pré-texto dramático. A experiência concreta do ator com o “ambiente” permite que a criação surja do próprio contato com a cidade. O espaço deve envolver o corpo do ator como ponto de partida para o início do processo de criação. Entretanto, o que deve ficar claro, é que o objetivo de identificar as “circustâncias dadas” sugeridas pelo ambinete não é o de escrever um texto, mas sim criar a própria lógica da encenação e da relação com o público.

O cidadão representa ao mesmo tempo um componente do esptáculo e é seu público potencial. Quando se presencia um espetáculo que invade a cidade se relacionando com todo o espaço urbano, o público dinâmico que segue a cena também se transforma em elemento de observação por parte do próprio público. Uma vez invadido o espaço de uso cotidiano o público – não voluntário – se vê frente à questão de aceitar o acontecimento e tratar de desvendar seus códigos ou simplesmente se distanciar. Para esse teatro, é preciso descobrir na cidade potencialidades para o trabalho do ator. A imprevisibilidade da rua não pode ser vista pelo ator como uma limitação, mas sim como uma possibilidade de descoberta. E para isso, precisa se aproximar mais da estrutura do jogo do que com as técnicas interpretativas convencionais de palco, como diz Jussara.

Agora, tendo em mente estes procedimentos de um teatro de invasão, cabe desenvolver um comentário exemplificado sobre os pontos em comum que podem ser encontrados entre a noção descrita e o espetáculo de palco “Otro” dirigido por Enrique Diaz com o Coletivo Improviso, pela ótica do trabalho do ator.

[Otro, de Enrique Diaz e Cristina Moura]

No final de 2009, Enrique Diaz propôs uma residência com diversos artistas do Rio de Janeiro, muitos deles do Coletivo Improviso, afim de começar o processo de criação do que se tornou o espetáculo “Otro”. Na época, assim como meus colegas do coletivo Pequena Orquestra, fui chamado para praticipar, mas infelizmente, por causa dos horários, fiquei apenas acompanhando de longe e através de relatos dos meus colegas, participei do processo como um ouvinte à distância.

Ao contrário, do que é de costume em processos de espetáculo de palco, o projeto não partiu de um texto, mas sim de um treinamento físico da técnica de improvisação dos Viewpoints e Suzuki, e de uma proposta de composição dramatúrgica que eu me arrisco à chamar de “invasora”, pois em certa medida, assim como André Carreira propõe, a experiência dos atores no ambinete da cidade em busca da descoberta do outro constituíu, nessa etapa do processo, o elemento básico de criação.

No programa do espetáculo, Enrique faz referência à residência e fala sobre esse procedimento de criação, em que os artistas ao invés de ensaiar um cena, organizavam exercícios de “saídas”. Estas saídas, pensadas dentro de sala, eram propostas do que poderia ser investigado na rua, no fluxo da cidade.

Uma vez na rua, os artistas, que precisavam dar conta de propostas que buscavam nos sujeitos da cidade o seu interloucutor, não podiam mais ser balizados por técnicas de representação de um espetáculo de palco, mas sim aparamentados por uma técnica de improviso que têm na flexibilidade e adaptabilidade sua principal característica, afim de que eles pudessem ter condições de jogar com as variáveis do espaço da cidade.

Durante a residência, muitas interfaces entre a cena e a cidade forma experiementadas através de diferentes tipos de “saídas”, chegando ao ponto de ser possível falar em categorias estratégicas. No programa da peça Enrique Diaz diz que para organizar as saídas foram pensadas algumas categorias possíveis: “Flaneur”, “Sophie Calle”, “Microdocumentário” e “Aqui e Agora”. Sem me deter minuciosamente na descrição das características de cada categoria, o que elas tinham em comum era o interesse em descobrir o outro através do ambiente da cidade. Para isso, os artistas se arriscaram em idéias de “saídas” que experimentavam tanto os elementos físicos quanto os dinâmicos da cidade. Na categoria do “Flaneur”, tiveram propostas em que artistas permaneceram em filas de banco e outros tipos de espera, experimentado o movimento da cidade. Já dentro das propostas chamadas de “Sophie Calle”, surgiram experiências em que pessoas da rua eram seguidas a distância pelo artista, que fazia um registro da sensação de seguir o fluxo dos sujeitos da cidade.

[Otro, de Enrique Diaz e Cristina Moura]

Assim como Carreira propõe que seja o teatro de invasão, um teatro que absorve da experiência da cidade e das pessoas a dramaturgia do seu espetáculo, foi partir dessas “saídas” que se construíu a peça de Diaz. Foi da descoberta da cidade, da aceitação de suas múltiplas facetas, que se construíu o espeteaculo “Otro”. Por isso, a importância da residência dentro do processo de montagem da peça “Otro”, porque foi a partir da sua proposta de “sair” que surgiram novas possibilidades de dramaturgia que mais tarde foram incorporadas dentro do espetáculo.

Entretanto se fossemos ler o espatáculo “Otro” a partir da noção de teatro de invasão, seria preciso desconsiderar que o objetivo de identificar as “circustâncias dadas” sugeridas pela cidade não é, segundo Carreira, o de escrever um texto, mas sim criar a própria lógica da encenação e da relação com o público. Digo isto, porque dentro do processo criativo de “Otro”, o resultado das experiências das “saídas” não representa um fim em si e não têm a inteção de ser um espetáculo de rua, que repensa a relação ator-espectador. Elas são apenas um meio para se construir material para a dramaturgia de um espetáculo de palco.

*[Fabrício Belsoff é artista multimídia, ator e bacharel em Artes Cênicas pela UNIRIO]


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