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O DIFÍCIL ADEUS

A fonte faz  ouvir o seu refrão, tão calmo

as flores empalidecem porque a noite vem

Tudo repousa no sono tranquilo

Todo o desejo não passa de um sonho

Esgotados os homens,

Dormindo, querem reencontrar

A alegria e a juventude

“Por que tanta raiva?”, me pergunto enquanto como um crepe na beira do Sena depois de ter assistido ao espetáculo 3Abschied de Jérôme Bel e Anne Teresa de Keersmaeker com a Orquestra Ictus . Nunca na minha vida vi tamanha fúria diante de uma peça de dança, acostumada que estou à complacente platéia carioca que aplaude de pé, mesmo quando não gosta tanto. Vaias e urros de “Pitoyable” (lamentável, digno de pena) atingiam o palco enquanto Anne Teresa dançava e cantava o canto do adeus de Gustav Mahler

Enquanto tento entender o que enfureceu tanto os espectadores dessa noite no Théâtre de la Ville, para compartilhar com os leitores do Tempo, sou interrompida por gritos de revolta que emergem distantes, da Rue de Rivoli… do escuro do teatro para a confusão da rua, um curto circuito estilhaça a minha frágil linha de raciocínio e sou jogada para longe da minha primeira opção de resenha crítica de 3Abschied.

Os ânimos em Paris estão exaltados… Expulsão dos ciganos roms, reforma da previdência, proibição do véu integral. Medidas polêmicas do governo Sarkozy que geram manifestações partout e dividem a opinião pública. Mesas-redondas no horário nobre de programas televisivos e artigos de jornais discutem e ressentem o sentimento de perda da identidade (esse conceito sempre problemático). Para uma metade desses formadores de opinião (a que apóia a deportação dos ciganos), a França representa uma potência européia, branca e ocidental, para uma outra metade representa o baluarte dos ideais republicanos de igualdade, liberdade, fraternidade. As muitas estátuas revestidas em ouro da Marianne, figura emblemática da república francesa, são a encarnação dessas duas metades da laranja. Reluzem para os turistas, como o retrato de Doryan Gray de uma imagem de si que não envelhece.

Estrangeiros do mundo inteiro, que trazem consigo outras formas de existir e não se enquadram em nenhum desses dois modelos, invadem a Paris de 2010 e desestabilizam todas as certezas e afirmações que sustentavam as discussões políticas dos gauleses. Essa outra parte do caldeirão francês, contudo, não possui praticamente nenhuma visibilidade, seja na grande mídia, seja nas instâncias representativas da Republique.

A insustentabilidade dos discursos existentes, diante de mais uma crise econômica e das novas demandas da mundialização, impulsionam a pátria a caça de mais um bode expiatório (dos muitos que frequentam o imaginário da história da Europa). A imagem do Rom serve como um judas perfeito a ser malhado nesse contexto.  Não se adaptam às exigências de uma sociedade civilizada: são nômades, não respeitam a propriedade privada, e o que é mais grave: não trabalham.

Apesar de muitas pesquisas afirmarem que a maior parte das comunidades ciganas do leste não possui mais uma vida nomádica, o discurso oficial do governo insiste que sua integração na sociedade francesa é impossível. Sem medo de explicitar a sua xenofobia, divulga estatísticas policiais que relacionam diretamente criminalidade e origem étnica: dois em cada cinco bandidos são roms, afirma Brice Hortefeux (ministro do interior do governo Sarkozy)

A esquerda tradicional, os sindicatos e partidos, por sua vez, mesmo denunciando a vergonha de tais medidas (“la honte pour la France”, segundo Martine Aubry, presidente do Partido Socialista) não consegue formular um novo modo de encarar a diversidade que não passe pelo discurso abstrato e generalizante dos valores universais. Evocam os direitos do homem e se esquecem que a história já mostrou que esse homem da declaração dos direitos ou será europeu ou não será nada além de um número nas estatísticas de criminalidade e nos retratos bem intencionados das missões humanitárias.

Esses dois principais discursos tradicionalmente vinculados à direita e à esquerda enfrentam sua inaptidão diante da realidade híbrida e explosiva que ataca a Europa, como novas invasões bárbaras que um dia destruíram o império romano. Sua fragilidade apavora a outrora irredutível aldeia gaulesa, impossibilitada de abandonar o passado e de criar novas ferramentas que permitam uma forma mais plural de viver o presente e projetar o futuro.

Depois desse breve desvio começo a compreender melhor o que enfureceu os espectadores nessa noite no Théâtre de la Ville. Explico ao leitor a estranha conexão traçada entre o palco e a rua:

3Abschied, espetáculo do polêmico  performer Jérôme Bel com a coreógrafa e bailarina belga Anne Teresa de Keersmaeker, (criadora de peças emblemáticas no cenário da dança contemporânea como Rosa Danst Rosas) tem como inspiração a composição de Gustav Mahler: Der Abschied (o adeus), última parte da obra  Das Lied Von Erde (O Canto da Terra). Inspirado em versos da poesia chinesa, o canto do adeus, fala sobretudo da aceitação da morte. Os versos finais, que podem ser lindamente ouvidos na voz da mezzo-soprano Katlheen Ferrier (http://www.youtube.com/watch?v=RtV7TSRLs5Y) retratam a cena de um poeta que no silêncio do crepúsculo aguarda a vinda de um amigo. Quando este chega, entretanto, é para anunciar a sua partida:

“- Amigo, tua estrada é longa,

por que, então, por que deves partir?”

ele me diz e sua voz parece velada: Ó meu amigo,

aqui em baixo, para mim, a alegria nunca apareceu” (extraído do texto do programa)

O Canto da terra foi composto em 1908, um período particularmente difícil para Mahler. O compositor havia perdido um ano antes sua filha, seu emprego na ópera de Viena e tinha descoberto que sofria de uma doença incurável do coração.

O projeto inicial de Bel e Keersmaeker era investigar novas relações possíveis entre música e dança a partir do conjunto da obra. Ao longo do processo, como explicam no texto do programa, Der abschied se impôs com tamanha força que resolveram trabalhar somente a partir dele. Segundo Keersmaeker o objetivo era investigar de que forma a obra centenária de Mahler poderia ainda ter impacto na atualidade.

“Nós dois somos o que se chama de ‘artistas contemporâneos’, produzimos cada um a sua maneira um teatro experimental que tenta representar a nossa realidade. O motor do nosso projeto é de apresentar uma visão atual da obra e não de mantê-la como uma jóia preciosa, sem se interrogar sobre seu impacto… Trata-se para nós de compreender o que ela nos diz agora, como essa obra centenária pode ainda nos ajudar a melhor compreender nossa realidade atual” (extraído do texto do programa).

Diante dessa proposta inicial, o espetáculo é um estudo sobre as possibilidades de criar una coreografia que transforme em dança, aquilo que em geral representa a sua impossibilidade: a morte.  Como dançar esse adeus? Como tornar corpo um corpo que já não é? Uma questão antiga e ainda atual para o nosso mundo ocidental: como representar a morte? Ou melhor, como apresentar o irrepresentável?

No estilo de outras performances de Bel (Véronique Doisneau, Isabel Fortes) os encenadores explicitam com clareza todas as dificuldades envolvidas nesse processo. Ao invés de produzirem uma apresentação espetacular onde a belíssima música de Mahler e o talento de Keersmaeker se unem para apaziguar a angústia do artista e do público diante de tema tão difícil, procuram compartilhar com a platéia o naufrágio de uma empreitada. Não concebem uma forma para o vazio, mas sustentam a sua presença.

Recebemos então vários fragmentos de possibilidades de dançar abschied. Porém, o último adeus, aquele que mais enfureceu boa parte daqueles que compraram o ingresso para essa noite, foi o mais frágil e delicado de todos. Anne Teresa acompanhada pelo pianista Jean-Luc Fafchamps cantou os versos que anteriormente tinham sido imortalizados pela gravação de Ferrier com sua voz fraca e inexperiente. “Pitoyable” urravam as vozes descontentes…

A bailarina, no entanto, não se intimidava. Continuava a cantar e a realizar sua dança com movimentos mínimos e excessivamente estranhos para uma platéia ansiosa por respostas prontas. Respostas que confirmem velhos discursos e ideais de superioridade. Que dominem e domestiquem todas as forças políticas, afetivas e sociais que nos ultrapassam e põem em xeque nossa identidade coletiva e individual. É na contramão dessa ansiedade por uma retomada da força que o espetáculo de Bel e Keersmaeker se constrói. Abre mão da técnica, da maitrise, tão valorizada por estas bandas para enfrentar com o rigor necessário o que não pode ser encarado de outra maneira. Aceitar a morte não representa em 3abschied uma virada depressiva e niilista, mas a abertura para o risco, para a vulnerabilidade, para o fracasso. Fragilidade que vira força diante dessa atualidade que anseia ferozmente por certezas apaziguantes.

Verdade seja dita: os franceses não fogem da raia dos debates. Nas platéias dos teatros, nas televisões e nas ruas é impressionante a tradição da discussão política. O que falta talvez é a humildade para aceitar que muitas vezes, no entanto, as palavras faltam e nosso discurso não comanda mais a realidade. Aceitar outras linguagens, outras ferramentas teóricas, outras formas de sentir é também se deparar com a sua própria finitude.

Categorias: Blog. Tags: Anne Teresa de Keersmaeker, Gustav Mahler, Jérôme Bel e Orquestra Ictus.