[O texto que você irá ler agora foi escrito por Walter Daguerre em 2003. De lá para cá, algumas coisas mudaram: Lula está saindo do poder enquanto Néstor Kirchner acaba de falecer; blogs de crítica teatral, como o Questão de Crítica, foram criados; houve o falecimento do Jornal do Brasil no formato de papel jornal etc. De acordo com e para além dessas mudanças, este artigo é oportuno para perguntarmos como o tempo dialogou com os teatros brasileiro e argentino. Boa leitura!]
Quando o comandante anunciou que em poucos minutos estaríamos aterrisando em solo argentino, tratei de não desgrudar os olhos da janela para não perder nenhum detalhe e começar, já dali, a conhecer aquele país até então inédito para mim. Lá embaixo, quadrados recheados de casas e edifícios separados por ruas e avenidas: uma colcha de retalhos simétricos que me levavam a uma primeira constatação: não só a geografia natural de Buenos Aires era bastante diferente da carioca, como também a organização urbana, a ocupação espacial daquela cidade se deu – continua se dando? – de forma bastante distinta.
O que me levou a Buenos Aires, além do turismo, foi a possibilidade de verificar determinadas impressões. Há algum tempo tenho pensado sobre o teatro brasileiro dentro de um contexto latino-americano, sobretudo por me parecer pertinente perguntar por que a maioria de nós sabe tão pouco do panorama cultural de nossos vizinhos e por que parece haver um abismo tão grande entre Brasil e os países que compõem a América Espanhola. A diferença de línguas é explicação suficiente?
O interesse específico pelo teatro argentino surgiu em duas frentes: por um lado, a subida ao poder dos presidentes Lula e Kirchner em eleições diretas em seus respectivos países e cujos discursos se mostravam comprometidos com fortes mudanças políticas e integração regional. O que me fez começar a pensar em como as histórias recentes de Brasil e Argentina se assemelham: foram alvo de ditaduras militares, passaram por um período de abertura econômica de modelo “neo-liberal”, mergulharam em profundas e devcastadoras crises e ainda lutam para consolidar suas democracias. Mas, não. Na verdade me é anterior essa sensação de espelhamento entre os dois países, pois lembro até hoje o assombro e a emoção que se abateram sobre mim quando assisti La Nube, de Fernando Solanas. O filme se passa em uma Buenos Aires acizentada, onde chove ininterruptamente há muitos dias, com cenas de pessoas e carros andando para trás, onde aposentados morrem sem conseguir receber suas pensões e artistas lutam para manter abertos seus teatros e sobreviver com alguma dignidade. Lembro perfeitamente que enquanto assistia ao filme não parava de pensar: é uma fábula sobre o Brasil! Estão falando de mim, de nós!
O segundo grande momento de interesse aconteceu com a vinda de três espetáculos durante o Festival Riocenacontemporânea de 2003: La estupidez de Rafael Spregelburd; Open House, de Daniel Veronese e Mendiolkaza, da Companiã Krapp. Pela primeira vez estava tendo a oportunidade de travar contato com uma pequena mostra do teatro argentino (embora já tivesse assistido às montagens de um texto de Veronese, Women´s, pelo professor e diretor André Carrera em 2001 e de Veneza, de Jorge Accame, feita por Miguel Falabella em 2003). Assistir aos três espetáculos me fez pensar nas condições de realização dos mesmos: como foram seus processos criativos? Como os grupos se estruturam enm termos de produção, divulgação e circulação de seus espetáculos? Como é a relação com o público? E com a crítica? Qual o contexto das três companhias dentro do panorama teatral argentino?
Já em terra firme, caminhando pela Avenida Córdoba, um peruano chamado Raul me explicou que a cada cinco quadras há uma grande avenida e que as quadras têm exatos cem metros de distância entre elas. Eu estava confortavelmente alojado na casa de uma amiga, Laura, que fica na rua Billinghurst, quase esquina com Córdoba. No mesmo dia em que cheguei, Laura me mostrou a fotocópia de um mapa feito por uma associação chamado TIABA (Teatros Independientes del Abasto) com a relação das salas de teatro existentes na região. São dezenove espaços destinados a representação teatral apenas naquele entorno: salas independentes, ocupadas por grupos independentes; salas com capacidade às vezes para apenas trinta espectadores; cafés-teatro, clubes, bares, shoppings. No dia seguinte, tive um encontro com um grupo de autores de Teatro del Pueblo, quando fiquei sabendo que em Buenos Aires existem mais de trezentas salas independentes.
Pesquisa recente revelou que há mais livrarias na cidade de Buenos Aires que em todo o Brasil. A mais famosa chama-se El Ateneu, alocada em um antigo teatro na Avenida Santa Fé, mas a livraria especializada em artes cênicas chama-se Fray Mocho que fica na rua Sarmiento. Foi lá que consegui alguns títulos sobre dramaturgia argentina contemporânea, entre os quais destaco Nuevo Teatro Nueva Crítica, organizado por Jorge Dubatti. Neste livro, Duabtti descreve o atual panorama teatral de seu país como um campo vasto e heterogêneo, onde coexistem propostas ideológicas e temporalidades muito distintas. Dentro deste contexto (constituído, segundo ele, de acordo com o cânone da multiplicidade), Dubatti destaca uma vertente que chama de novo teatro argentino, que corresponderia aos teatristas que começaram suas carreiras nos meados dos anos 80, durante a redemocratização do país, depois da ditadura militar que perdurou de 1976 a 1983.
Ora, acontece que essa diversidade não ocorre somente em Buenos Aires. O próprio Dubatti afirma que esta é uma característica típica do teatro das grandes metrópoles na era pós-moderna; a diversidade está desenvolvida através de uma produção heterogênea tanto na forma quanto no conteúdo. Talvez se possa dizer que no Brasil essa diversidade é verificada com maior nitidez em São Paulo, cidade que possui grande número de salas e grupos, amparados pelo lei 13.279 de fomento ao teatro. Entretanto, esta é uma lei promulgada em 2002 e a tradição de um teatro paulista cosmopolita (múltiplo, diverso, heterogêneo) vem de muito antes. Há os que alegam se o Rio de Janeiro um balneário, cuja tradição teatral sempre esteve ligada às comédias e grandes musicais. Por mais que essas afrmações constituam parte de um verdade, elas só mpodem ser consideradas levando em conta outros tantos fatos que formariam o campo teatral carioca. Entre eles, destaco a nossa crítica teatral.
Em sua análise, Jorge Dubatti observa que junto ao surgimento desses teatristas e a consolidação do novo teatro argentino, configura-se, também, uma nova geração de críticos, cujo conjunto evidenciaria características inéditas na história da crítica teatral de seu país e que estariam dialogando com as novas condições culturais que o autor vê surgir na Argentina e no mundo de maneira geral. Dubatti relaciona as principais características desses novos críticos da seguinte maneira: não se guiariam por um modelo único de autoridade, mas responderiam por uma diversidade de atitudes frente ao teatro contemporâneo: diante da pauperização crescente da crítica como discurso nos meios massivos – com perda de espaço, exigência de alta legibilidade ao custo da trivialização, resumos de classsificação (estrelinhas, bolinhas, bonequinhos…) -, os novos críticos estariam criando espaços alternativos – revistas, fóruns, encontros, etc. – para desenvolver com maior liberdade e riqueza sua tarefa; existiria um maior entrecruzamento do exercíciod a função de crítico como criação teatral, ou seja, em muitos casos, não se poderia dizer tratar-se de artistas que praticam sistematicamente a crítica ou críticos que fazem teatro, porque ambas as atividade se resolveriam sem contradições e propiciando mútua fecundidade; responderiam a necessidade de ler os novos fenômenos teatrais a partir de horizontes teóricos e estéticos atualizados, sem cair em anacronismos, a partir da tomada de consciência e reconhecimento das novas condições culkturais e um crescente interesse pela história do presente; por fim, estes críticos manifestariam em sua prática o aprofundamento da subjetividade como valor do discurso da crítica e a idéia de que não há um campo teatral, mas sim um conjunto de leituras diversas que proporiam diferentes imagens organizadoras do campo teatral.
Quando o comandante anunciou que em poucos minutos estraíamos aterrisando no Rio de Janeiro, tive aquela agradável sensação de estar de volta em casa. Da janela do avião, fiquei observando a geografia natural e a ocupaçãoe spacial de nossa cidade. Sem dúvida a Baía de Guanabara se destaca na paisagem como uma diva, que apenas concede a periferia da cena aos outros atores. Por outro lado, como é belo o desenho tortuoso de todo o entorno natural. E também a irregularidade das ruas e casas vista de cima. Como é diversa a nossa cidade.