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ANGELICA LIDDELL E A TRANGRESSÃO AO PUDOR

‘’Utilizo o teatro para encontrar um sentido na vida. Por isso ele chega a ser mais importante que a própria vida. Porque graças ao teatro, eu organizo a dor, e dessa maneira a compreendo’’
(Angélica Liddell. ‘’Gracias al teatro organizo el dolor y lo comprendo’’. El Cultural del diário El Mundo, 13/03/2009)

Angélica Liddell, expoente da cena contemporânea espanhola, vem pela primeira vez ao Rio apresentar seu espetáculo [Yo no soy bonita] no 2º TEMPO_FESTIVAL 2012. Nascida em 1966 (Figueres, Espanha), ela é reconhecida em seu país como uma dramaturga que teve a origem de seu trabalho nos anos oitenta. Sendo uma filha da geração do movimento contracultural Movida Madrileña, ela se caracteriza como uma figura extrema e radical. Em 1993, funda oficialmente seu grupo Atra Bilis Teatro a partir do qual começou a desenvolver seus espetáculos solos, os quais ela assina como dramaturga, atriz e diretora.
Seu trabalho está diretamente ligado às dimensões da performance e da instalação. A artista, que acumula muitas funções em seu currículo, também costuma assinar a cenografia na composição de seus espetáculos. O seu teatro busca a poesia cênica sobre o território do humano, investigando as profundidades dos sentimentos e das grandes emoções, os quais são espaços misteriosos de difícil definição (daí a dificuldade que críticos e teóricos têm ao caracterizar o seu trabalho).

 

Desde seus primeiros textos, percebemos sempre uma aposta numa dramaturgia não convencional que busca expressar o que há de obscuro por trás das relações humanas. Em geral, os temas que costumam aparecer com frequência em sua dramaturgia são a morte, a dor, o sexo, a violência e a angústia existencial. Estes são os motores criativos de seu trabalho. ‘’Não quero negar minha capacidade de odiar. E tenho uma imensa capacidade para odiar. Tenho uma capacidade de ódio infinita (…) Amor e ódio são sentimentos que nos pertencem, justamente por isso podemos transformá-los em objetos estéticos (…) Para mim é muito importante transformar o ódio em beleza’’. A arte é a expressão através da qual a artista consegue ultrapassar a sua própria angústia existencial.

 

É muito interessante a maneira como a artista não censura o ódio como lugar de potência para a construção de seus espetáculos. Para ela, falar da dor e do sofrimento é algo revolucionário, porque é sair do falso discurso da intelectualidade. A cena é um espaço social no qual a artista e seu público podem compartilhar a dor através de uma experiência teatral. Há uma partilha do que há de sensível, de humano e de verdadeiramente existencial. O sofrimento é visto como algo positivo que deve ser vivenciado artisticamente. Por isso, a transgressão de Angélica Liddell não está associada ao escândalo, mas sim como um lugar de encontro com as profundas comoções do espírito. Enquanto isso, a beleza é o estado em que nos encontramos quando nos comovemos diante do inexplicável. Para a artista, transgredir o pudor nada mais é do que discutir as relações humanas para além dos limites de moralidade, justiça e ética. É colocar-se inteiramente num nível direto de confronto com as questões humanas onde a artista assume a pornografia de sua alma.

 

Em cena, vemos uma atriz que funciona por espírito de contradição: tem uma capacidade infinita tanto de amar como de odiar. A sua obra todo o tempo alcança o conflito de criar beleza e destruição. Os seus espetáculos se desenvolvem no excesso e no extremo para que, neste estado, o espectador seja colocado num lugar de reflexão. A artista conduz o espectador até uma situação extrema para que ele seja transportado para um lugar de experiência diferente do seu cotidiano. A partilha da dor como estratégia sensível de troca entre performer e espectador é o canal através do qual este último consegue acessar esferas do humano perceptíveis somente através da arte. Enquanto o Estado e as instituições têm o papel de criar a ilusão da perfeição, o trabalho artístico de Angela Liddell busca criar a experiência onde as imperfeições são possíveis.

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