(Crônica da peça que vi na segunda-feira para o blog do TEMPO_FESTIVAL das Artes)
Eu havia marcado com a Juju no dia anterior, rabo de domingo, depois de uma conversa-fofoca das mais brabas, em que analisamos e retro-decodificamos problemas amorosos – os nossos e, principalmente, os dos outros, esses tolinhos. Resolvemos que iríamos juntas ver a peça “O que você gostaria que ficasse”, dirigida por Miguel Thiré, ali no Planetário. Em cima do laço, o bipe do celular: mensagem da Juju. Furou bem em cima. Ah, vaquinha.
A Juju, portanto, não estava entre as cadeiras da platéia daquela segunda-feira no Planetário. Todavia, eu estava, bem como aqueles cerca de cinquenta estranhos perto de mim. A platéia fica bem pertinho do espaço de encenação, criando a sensação de proximidade e intimidade, que aumenta progressivamente ao longo da peça. Os atores (atores?) se aproximam do público (público?), perguntando, delicada e individualmente, sobre histórias de vida. A menina do meu lado direito, que tinha bom gosto para bolsas, contou à atriz sobre sua festa de quinze anos. Já a moça domeu lado esquerdo, dotada de uma bela franja, falou sobre viagens de infância em Minas. A atriz me perguntou se eu tinha uma história de avó. Sim, tenho. Eu contei uma história com a Vó Antônia.
Aí começou. Aí é melhor esquecer as palavras ator, platéia e encenação.
O que você gostaria que ficasse no mundo, se ele acabasse? Com base em um livro e em um filme, os atores explicaram a proposta e desenharam, no chão, com giz, o que eles gostariam que ficasse. Uma barra de chocolate, um quadro do Van Gogh, um livro que marcou a adolescência. De forma displicente, coloquial, sincera, somos enredados nas memórias deles, que, instantaneamente, estimulam as nossas.
Uma atriz pergunta: alguém me dá um nome? Marina, sopra um sujeito de voz grossa. Surge, então, um personagem, criado a partir das histórias contadas pelo público. A trajetória de Marina tem um pouco de cada um de nós: ela viveu a festa de quinze anos da minha vizinha à direita, as confusões profissionais do cara lá do canto, e deixava bilhetes como a minha avó. Um pedaço da história de cada um cria a vida ficcional de Marina, que os performers contam para nós. Improviso, performance e teatro cruzam-se em um embaralhamento de linguagens. Cenas pré-concebidas se mesclam a outras improvisadas na hora. O espaço do teatro serve para esse tecer de relatos, de experiências pessoais, de narrativas. É divertido. É emocionante. O jogo está claro: a plateia se desloca afetivamente da posição de quem assiste para ser co-autora da peça, e, ciente disso, assume a tarefa com prazer. Ali, somos todos dramaturgos.
Aquelas pessoas que o acaso quis que eu encontrasse naquela segunda-feira têm marcas de vida, que, pelo jogo, passam a me interessar – seja pela graça, pela ternura, pela dor, mas principalmente, porque emocionam, porque me informam e formam, afetivamente. Do desconhecimento da fila de entrada, passamos a um doce clima de intimidade. De entardecer em acampamento. De papo com melhor amiga adolescente, antes de dormir. Me conta uma história que eu te conto outra.
O compartilhar de memórias faz com que o tempo seja, talvez, o verdadeiro protagonista desse encontro (encontro é a melhor palavra que achei para descrever). Algo que não se pretende nada além de uma experiência narrativa. Narramos nossas vidas e assim as construímos e reconstruímos, eternamente.
Preferências pessoais: um cara disse que gostaria que ficasse um açaí. Eu não tomo muito açaí, mas simpatizo, acho uma boa ficar. Um outro lá gostaria que ficasse uma marquinha de biquíni. Singelo, me comoveu, eu deixaria também. Um cara na fila oposta desenhou uma banda de frevo, e isso eu não sei se gostaria que ficasse. Frevo me irrita. Com o giz na mão, desenhei no chão um barco, o meu veleiro, que precisa ficar. E desenhei também uma música, mas, passado uns dias, já mudei de ideia, não sei se gostaria que ela ficasse. Deixei também um terceiro sinal, aquele momento em que se tem que entrar em cena.
No final, com todos os espaços cobertos de notações, desenhos e frases em giz, tiramos uma foto. Paramos o tempo para, mais uma vez, fazer o registro de um episódio de vida.
(Uma notinha curta: tenho visto nos teatros cariocas, de forma tão recorrente quanto enfadonha, obras que se ocupam de usar tecnologia a esmo e orquestrar mesclas modernosistas e chatíssimas de linguagem. O pós-moderno e o contemporâneo em seu pior estado. Afastamentos. E despropositados. Curiosamente, as peças que mais têm despertado sincero interesse meu, e de grande parte dos frequentadores de teatro, são aquelas que se importam principalmente com histórias, emoções, partilhas, em um despojamento de recursos que me parece ser bastante libertador.)
A Juju furou bem em cima. Perdeu, Juju. Vou ligar para contar como foi.
Está tudo certo, ela foi viver alguma outra história.