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NOITE DE BERNA – PT.3

(O texto “Noite de Berna” foi dividido em 4 posts. Esta é a terceira parte. Caso queira ler o post anterior, clique aqui! Ao final da leitura, haverá o link para que você possa prossegui-la!)

Ela acaricia seu leitor, mas uma carícia é difícil, não é afetiva. Entre os poderes que possui a mão está aquele da mansuetude. A mansuetude se tornou solene por designar o gesto pelo qual os soberanos e os padres concediam o perdão. Em sua origem, a palavra mansuetude designa a arte de fazer vir à sua mão, o que faz parte da arte de viver com um animal, de domesticá-lo. “Muito raros são os textos que nos dão a mão e nos ajudam a ganhar o mundo da mansuetude”, enuncia Helène Cixous em uma de suas conferências sobre Clarice Lispector, e especifica que, ao pé da letra, a palavra significa o hábito de dar as mãos. Duvido que haja um mundo da mansuetude, e cada um de nós sabe que é mais fácil para um ser humano acariciar um animal mudo do que outro silencioso animal humano. A carícia nos vem de uma mão inesperada, da mão irmã (em suas raizes, as palavras mansuetude e soeur – palavra francesa para irmã – estão ligadas etimologicamente). Na madrugada carioca, essa mão irmã, essa outra mão que não escreve, que guarda silêncio, que pacifica a agitação da mão que escreve e que atravessa nossa agitação, se põe às vezes sobre o cão Ulisses. Outrora, ela se punha sobre Dilermando, o cão que cruzou o caminho de Clarice em uma rua de Nápoles em 1944, e que ela comprou no ato, com a mesma imediatez com que, à primeira vista, ele a reconheceu. Ela se ausenta, o confia a uma amiga, e quando retorna semanas depois vestida com um casaco que Dilermando jamais vira, a alegria corta o rosto do cão de Nápoles. Dilermando a reconhece, como a havia reconhecido em seu primeiro encontro, como, em Ítaca, foi o cachorro quem primeiro reconheceu Ulisses. Dormindo enquanto Clarice datilografava, despertando quando o ruído das teclas parava porque um obstáculo cruzava seu caminho, o cão de Nápoles, Dilermando, e mais tarde Ulisses, no Rio, foram seus conselheiros e primeiros leitores, uma vez que não se sabe o que os cães compreendem. Enfim, seus primeiros narradores. Em um de seus últimos livros, Ulisses é dotado de palavra e lhe sopra histórias. O cachorro será seu emissário junto aos leitores. Clarice desconfiava das pessoas que não gostavam dos animais. Eles esqueceram que poderiam ter nascido animais, líquidos, sólidos, gasosos, sem palavra, é por isso que lhes faltam carícias? Essa carícia não é um consolo ou um conforto para o coração, ela habita a fronteira e dá a ouvir. E é preciso ouvir com o corpo inteiro Não ceda ao cansaço, confie nele, ou então Eu agradeço a você por andar devagar pela noite, ou então Fale sozinho, mas, pelo amor de Deus, tenha prazer em falar sozinho, ou então Não leia o jornal na companhia de seu (sua) novo(a) amigo(a), que o jornal permaneça dobrado, observe-a, observe-o, ele, ela se elevará, de preferência, procure o cavalo negro que habita dentro dela, dele, ou ainda Não se pareça com nada, mas se pareça com algo. É isso o que dá a ouvir a carícia. (3 de Agosto de 68)

E eu cito Robert Walser: “É preciso levantar a orelha, e tudo está aí. As verdades podem corresponder a intenções. São elas ainda assim verdades? As mentiras quando não intencionais não são mais mentiras. Pode ser que nos compreendamos por um certo tempo então, de repente ou mais tarde, não nos compreendamos mais. Seria preciso poder estar de acordo sobre um pouco que fosse, sim, e meu voto não para que vocês estejam satisfeitos comigo, mas com vocês mesmos.”

Se esse encontro teve lugar, para que ele tenha lugar com o que chamo de o livro do autor que você ama, este autor escolheu, ao invés da utopia literária da eternidade mediana, a exposição ao encontro. Vendendo a cada fim de semana uma parte de sua alma, Clarice [Lispector] se expôs. Ela se defende, diz ela, de ser um escritor profissional, como fazia Robert Walser. Ela desconfia tanto da eternidade mediana dos profissionais, como da ocasião oportuna. O livro do autor que você ama vem a ser. Ele não terminou seu caminho. Ele continua a descobrir-se em descoberto. E, na sua vida, nas suas diferentes vidas, você não terá direito a mais do que algumas leituras de um livro ou obra do autor que você ama. Para fazer uma comparação numérica com os amores não livrescos, sob o risco de cair no ridículo, muitos calculam a quantidade desses amores entre três e cinco. Esse módulo parece razoável, estatístico, verossímil, mas sobretudo, insisto, razoável. Haverá exceções, certamente, contestações a propósito do número de amores encarnados, mas não fica mal aqui nos atermos a essa variável, de três a cinco. Concordemos que o livro do autor que você ama põe a questão de uma infidelidade, presente ou retrospectiva, muito mais vagamente do que o encontro amoroso. Sendo assim, você terá, sem dúvida, a chance de encontrar, entre as coisas que oferecerão esse alumbramento e esse choque, mais livros do que pessoas. Pois bem, mesmo assim, quem quer que você seja, esse encontro não acontecerá mil e três vezes.
Não temam que essa hipótese sirva para estabelecer um tratamento cruelmente sentimental da literatura. Todos vocês, em algum momento, jovens ou adultos, já tiveram a sabedoria de dizer eu não sei, não sei mais o que ler. Onde estava então sua esperança? Logo, veio um dia, e foram alguns dias em cada uma das suas vidas, em que a leitura deixou de ser aquela aventura da curiosidade, que vai da devoração à distração e ao conhecimento, com suas alegrias, suas piadas, seu tédio. Trata-se de um acontecimento diverso, um elo se faz, estranha experiência, o livro que você ama se torna o livro do autor que você ama. Não podem se arrepender de não o terem lido mais cedo. A leitura transparece pelo superfície da sua pele. Ela não o cura de nada, você não se metamorfoseia, entretanto, um gesto de reconhecimento aparece de repente em um caminho perdido, a distante carícia que o convoca ao mundo e o envia para o deserto. A estranha substância que se chama vida ou mundo se torna mais clara e tudo o que ela tem de obscuro é examinado com menos medo e mais respeito. Você escuta até mesmo a voz dos mortos. Você vê o discurso, arriscamos a dizer. E aceita o silêncio que se segue. Parece que o livro do autor que você ama lhe foi indicado. Por um golpe de sorte, para levá-lo em direção a esse livro dentro do qual você continuará a procurar até que ele o alcance. E o amor do livro que você ama não tem nada a ver com premiações – com um Nobel íntimo que você concederia, ou com o livro que você levaria para a ilha deserta. Esse amor pressupõe um gesto que, você, leitora, leitor, acredita destinado a você vindo da outra mão do autor que vocês amam, a mão que não escreve, a mão esquerda de Clarice [Lispector], enquanto ela deixa a direita deslocar-se à seu gosto.

A hipótese do número limitado de livros do autor que vocês amam é um jogo de memória aberto a todos. Clarice [Lispector] de certa maneira o aceitou, respondendo a uma questão sobre os primeiros livros de sua vida, essa vida que ela chamava de cada uma de suas vidas, a história de Aladin, a do patinho feio, mais tarde, O lobo da estepe de Herman Hesse, e, enfim, o livro que, vale lembrar, ela não nomeia, se contentando em indicar o nome desse autor que ela ama, Katherine Mansfield. Por meio desses livros do autor que você ama, cada leitor pode dar algumas cartas que juntas formarão um leque. Erroneamente ou não, o leque evoca a imagem ingênua e alegórica da sucessão de fases em nossa vida, em nossas vidas. Vocês não se esqueceram da posição, da situação em que leram esses livros. Proust relia suas antigas notas de leitura nos lugares onde ele as havia tomado, envolvido pela mesma ambiência. E justamente Proust: eu o li inteiro com quatorze anos, à mesa da sala de visitas dos meus pais, exatamente no canto da mesa, ao cair da noite, e a cada vez eu esperava o último momento para acender a luz e prosseguir. Só pude ler Hölderlin em alemão durante as madrugadas de adolescência, e isso significava, senão compreendê-lo, atê-lo ao mais simples, na certeza de que ele se atinha ao mais simples. Anos depois, a pilhagem e afogamento de minha biblioteca – os livros foram com efeito postos em sacos e lançados no Sena – me fizeram ler, em um apartamento estranhamente vazio, o Diário e as cartas de Kafka, e eu estava sempre estendido sobre o leito e era sempre no início da tarde. Só pude me aproximar Wittgenstein de manhã, e nunca mais do que uma hora, e eu a chamava a hora da jóia do pensamento. Me lembro de um divã de molas gastas em uma varanda de uma fazenda no estado de São Paulo, e do calor, e de uma certa monotonia, da presença de vacas como que vindas da Índia, e de como tudo isso dava a paciência de ler, desprovido de dicionário, durante quase todo o dia, as setecentas páginas desse romance de formação que leva ao conto, Der Nachsommer, A estação passada ou Verão Indiano do austríaco Adalbert Stifter. Li A descoberta do mundo (ultrapassei, assim, o fatal número cinco), por quatro ou seis meses, ao acordar ou antes de dormir, com a velocidade ou a lentidão de um homem que ao retornar de uma longa viagem encontra uma pilha enorme de jornais e, decidido a lê-los todos, só consegue fazê-lo em pequenas doses. Será que eu quis parodiar o leitor que durante mais de seis anos recebia uma vez por semana novidades de Clarice [Lispector] no Jornal do Brasil? Eu o li ao longo do tempo, e foi assim que me apaixonei.

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