(O texto “Noite de Berna” foi dividido em 4 posts. Esta é a segunda parte. Caso queira ler o primeiro post, clique aqui! Ao final da leitura, haverá o link para que você possa prossegui-la!)
“A cidade estreitamente fechada, em sua forma e em seu fechamento, lembra uma enorme estalagem cheia de logradouros ligados uns aos outros por casas e pátios, em meio a corredores e arcadas, um pouco à italiana”, escrevia Robert Walser a respeito de Berna. Velha cidade medieval, fechada, onde, de sua janela, Clarice [Lispector] vê a estátua da justiça segurando um balança. A cada manhã ela observa essa utopia, o ponto de equilíbrio entre as duas bandejas. A cada dia ou a cada noite, na hora em que “a insônia faz levitar a cidade mal iluminada” (28 de Outubro de 1967). Berna cercada de montanhas, Berna e sua falta de conjunto social. Berna onde não se sabe a quem na rua dirigir a palavra, aparece depois de vinte anos como o berço e o lugar de aprendizagem da insônia. Berna é essa lilliput, capital onde qualquer um, em seu apartamento, só pode se sentir, no mínimo, como alguém que está sempre sofrendo. Nessa Lilliput, seria possível acreditar no absurdo geográfico de se estar no meio caminho entre o Rio Janeiro, ainda capital, e o vilarejo natal na Ucrânia, Tchechelnik. Clarice Lispector é Gulliver na capital ridícula de um país de estatura ridícula. Exilada a igual distância dessas duas imensidões, o Brasil, país natural, e a União Soviética, a que pertence o país de nascimento do qual partiu no primeiro ano de vida, a Ucrânia – esta sendo ainda mais imensa por estar fora da memória. Berna capital neutra de um país neutro, onde ninguém parece precisar de ninguém, país de exílio onde há pouco se refugiaram artistas, revolucionários, entre os quais Lênin, pouco antes de retornar à Rússia. Sobre os dois pratos de sua balança, a minúscula Justiça suíça mantém a igual distância o Brasil e a Ucrânia, como a um eu e um não-eu. Mais do que a dor da saudade, ou do que os pensamentos continuamente voltados para os amigos desaparecidos, o exílio se torna a medida de uma aterrorizante desproporção, que faz da noite de Berna, essa noite desprovida do perfume da noite espanhola e do mar cálido da noite italiana, ainda mais vasta, ainda mais deserta: “A noite de Berna tem o silêncio”. O silêncio, que é nessa Lilliput a única imensidão palpável e a única aparição, transforma o insone em fantasma. Noite tão reveladora que Clarice incuirá esse texto de crônica (24 de Agosto de 1968), com poucas variantes, em dois livros Uma apredizagem e Onde estivestes de noite? E, já que o silêncio não nos julga, não é a justiça, não está acima de nós, já que o silêncio é o silêncio, é preciso embarcar, se temos a coragem, partir com o silêncio, “como se estivéssemos num navio tão descomunalmente grande que ignorássemos estar num navio. E este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais do que isso um homem não pode.” Como podemos observar um pôr-do-sol esquecendo-nos que somos nós, terrestres, que afundamos. Berna, ínfima de dia, se torna no silêncio de sua madrugada a plataforma mais deslocada que há, a cidade excêntrica por excelência, bem como são profundamente excêntricos os seres e lugares que se recusam estritamente a sê-lo. E, após essa experiência que nunca mais se esquece, mesmo quando vem o socorro da luz do dia, é inútil, diz Clarice [Lispector], até fugir para outra cidade.
O encadeamento de crônicas em A descoberta do mundo é mais articulado do que parece. O assunto de um poderia ser soprado ou provocado pelo tema do sábado precedente. O enorme vazio do silêncio da madrugada de Berna é a lembrança de uma experiência que se segue a uma experiência bem mais recente de uma outra figura da enormidade: duas baleias encalhadas, agonizando, uma na praia do Leme, outra na do Leblon. Gulliver Lispector não está mais em Lilliput, mas em Brobdingnag, reino dos gigantes, face a face com a agonia da mais enorme das criaturas terrestres. Ir ver uma baleia encalhada, mesmo se ela agoniza, é uma tentação. Todo o mundo desce para a praia. Leva-se as crianças, a baleia pertence a seu planeta, elas sabem que Pinocchio ali reencontrou o velho Gepeto, certamente ouviram falar da história de Jonas, se há uma Bíblia em casa, ou da baleia branca de Melville. Tendo lido, ouvido, ou sem ter lido ou ouvido histórias, elas têm uma imagem da baleia. Mas Clarice, a personalidade que, apesar de si, se reportava ao passado e amava voltar a ser pequena, de quem se disse que pertencia à turma dos que não lembram de nada que lhes aconteceu até os dez anos de idade, não vai descer para a praia. A multidão tinha o desejo de ver esses corpos de monstros caídos, pessoas haviam atirado nelas à queima roupa, sem poder dar fim à sua agonia, e outros as despedaçavam ainda vivas para vender a quilo a excelente e barata carne das baleias que não conseguiam sequer morrer. Mas Clarice [Lispector] não quer por nada nesse mundo descer para ver. A lenda da baleia encalhada, reconduzida à terra pelo quebrar das ondas na praia, agora incapacitada e ao bel prazer dos homens, essa lenda de captura, de vingança e de dominação comercial toma corpo, e só lhe inspira horror e repulsa. Clarice [Lispector] se lembra então de sua própria agonia. Sua mão gravemente queimada pelo incêndio em seu quarto, causado pelo esquecimento de apagar o cigarro, a mão direita que escreve, que golpeia a máquina de escrever, essa mão e outras partes de seu corpo devastado a deixam três dias entre a vida e a morte. “O corpo estava à beira da morte, a alma a ignorava.” Em seu quarto no hospital é posto um cartaz “Silêncio”. Entre a vida e a morte, ela é mais do que nunca eloquente. Sua voz é clara. Todas as visitas são benvindas. Ela quer visitas. Será preciso que o médico a repreenda, “Mais uma visita e eu a mando de volta para casa assim do jeito em que se encontra”, para que ela se dê conta de que está à beira da morte, sofrendo insuportavelmente. Em suas sucessivas crônicas, sobre a morte de uma baleia e a noite de Berna, o compasso da alma mede a distância entre a eloquência em agonia e o silêncio no exílio. Essa topografia contínua esclarece a resposta de Clarice [Lispector] a seu tradutor americano: Eu, ter uma sintaxe? De jeito nenhum. Ela luta de mãos vazias. Nós somos deuses, somos ferozes, somos nossos próprios macacos de imitação, jamais alcançaremos o ser humano em nós, diz ela ao fim da crônica Morte de uma baleia, e uma vez que somos feitos para o pequeno silêncio, na madrugada de Berna “o coração tem que se apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas.”
Na madrugada de Berna, prelúdio de tantas noites de insônia, tantas que foi preciso combatê-las com calmantes, ao ponto de provocar o incêndio do quarto e a destruição de seus manuscritos, Clarice Lispector nem enfrenta nem reencontra o anjo que leva a luz e a anuncia, ela não recebe o sopro da musa, demasiadamente usual e inteligente para ela, mas, sob a perspectiva do silêncio – e o silêncio não tem perspectiva, ele é por demais vasto – ela começa o combate com o duende, ela o “desperta das últimas moradas de seu sangue.” O duende que conhecemos do livro e Frederico Garica Lorca Teoria e jogo do duende, essa sonoridade negra de um demônio obscuro e tremulante, herdeiro do tão alegre demônio de Sócrates, “esse poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica” não está na garganta, mas sobe por dentro a partir da planta dos pés. Os pés são molhados pela espuma de algo que se derrama em nós. É preciso esperar no silêncio da noite de Berna (Cl. L. 24/8/1968), porque o duende zomba dos dons, da técnica, dos nossos saberes. Nós procuramos outra coisa. “O duende fere e, na cura dessa ferida que não se fecha nunca, está o insólito, a invenção da obra de um homem.” “Onde está o duende?, conclui Garcia Lorca, pelo arco vazio entra um ar mental que sopra com insistência sobre a cabeça dos mortos, em busca de novas paisagens e acentos ignorados; um ar com cheiro de saliva de menino, de erva pisada e véu de medusa que anuncia o constante batismo das coisas recém criadas.” O duende não pertence somente à Espanha, Clarice Lispector encontra o duende, a sonoridade negra, o demônio obscuro e tremulante, nessa noite de Berna. O duende é a resposta à questão que a saudade põe à Clarice [Lispector]. Uma resposta análoga àquela que lhe ocorre após ter girado em torno da Esfinge, junto às Pirâmides, “Eu não a decifrei, mas ela também não me decifrou.”
Clarice [Lispector] luta para medir a escala humana, retomando ao longo do tempo grandes ou pequenos fatos, encontros, fábulas inacabadas, ela que fantasiava antes de saber ler e escrever, e cujos contos escritos na infância tiveram sua publicação recusada porque não continham fadas ou piratas. Ela faz uma carícia em seu leitor. Com as mãos vazias. Somente a mão direita escreve. Em minha memória, associo a emoção que senti ao ler as páginas da morte de Don Quixote – emoção que, mesmo já estando então bem maduro, me levou às lágrimas – à mão perdida de Cervantes durante a batalha de Lepanto. Hoje, associo a emoção que me deu A descoberta do mundo à mão direita gravemente queimada de Clarice Lispector. De Cervantes a Clarice o tom da leitura mudou. A lágrimas de leitores e leitoras se tornaram mais raras. A união do livro e das lágrimas faz parte de uma química antiga. Elas surgem mais rapidamente ao escutar uma música, e os filmes lacrimejantes são capazes de encharcar as poltronas das salas de cinema, mas, desde nossas bisavós, as lágrimas quase nunca inundam as páginas dos livros. Esse dado moderno, a dificuldade das lágrimas, é o que o autor do livro que vocês amam afronta, quando deixa a descoberto a mão que não escreve. Essa outra mão chama, acena. Ela se aproxima de nós, nos estendendo sua obra inacabada e nos oferecendo, nos deixando a leitura inacabada de sua obra, a nós, cujo silêncio, diz Clarice [Lispector], é o mais grave de todos os do reino animal. Quando você sente o toque da mão que não escreve, você ama o livro do autor que ama.
É sem dúvida uma pena que, para designar o livro involuntário, que não parte de um projeto inicial e permanece inacabado, não disponhamos de outro nome a não ser o de livro. Mas a Bíblia, antes de mais nada, parte de um projeto inicial e, segundo suas edições correntes ao redor do mundo, não é ela um livro involuntário? Começado em Agosto de 1967 e interrompido em Dezembro de 1973, A descoberta do mundo é a reunião de trechos publicados a cada sábado por mais de seis anos. A obra inacabada seria continuada se o Jornal do Brasil, que a pagava, além de um salário mensal, um décimo terceiro, não houvesse brutalmente expulso Clarice Lispector por meio de uma carta de dois de Janeiro de 1974. É assim, frequentemente golpes terríveis são desferidos no dia seguinte da festa. Cedo ou tarde, e talvez pela morte, esse trabalho estava destinado a se interromper. Quarenta anos depois me chega uma soma de seiscentas páginas. Uma soma e não uma série desarmoniosa de trechos heterogêneos, enfilerados de qualquer jeito. A descoberta do mundo é uma escuta da atualidade extemporânea. E sua atualidade extemporânea não acabou.
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