TRADUZIR

A MAIORIDADE DA QUEDA DO MURO E O CLICHÊ DA UTOPIA

Assisti essa semana a um ensaio aberto da parte musical de Hedwig, espetáculo que estreia em setembro no Rio de Janeiro. Pra quem não viu o filme (quem não viu, aliás, pare tudo o que está fazendo e vá imediatamente à locadora!), essa é a história de um rapaz alemão que se apaixona por um soldado do exército americano. Para poder ir com ele à América, ele precisa fazer uma cirurgia de mudança de sexo. Só que a cirurgia dá errado e o que sobra de seu pênis é um “centímetro enfurecido” (na tradução de Jonas Klabin para an angry inch, no original). Quando já está nos Estados Unidos, ele é abandonado pelo amante, no dia em que vê pela televisão o anúncio da queda do Muro de Berlim. E por aí vai…

 

O Muro foi derrubado em 1989. Nessa época eu tinha dezesseis anos, morava no interior de São Paulo e era aluno interno de uma escola. Esse isolamento me mantinha bastante afastado das notícias do mundo, e confesso que a queda do Muro pra mim foi apenas a imagem na TV de pessoas comemorando em cima daquele muro feio, grande e todo pichado. Minha política em 1989 se resumia a um microcosmo, onde brigava ferozmente por liberdades mínimas num colégio interno, através de um jornal que para mim era absolutamente revolucionário ao citar trechos do Ateneu de Raul Pompeia. Além disso eu protestava com greves de silêncio contra os maus tratos aos animais, tão comuns no Brasil menos metropolitano. Enfim, eu era o clichê da utopia!
Assistindo ao ensaio musical que está em cartaz no teatro Glaucio Gill, em Copacabana (muito bom, diga-se de passagem, vá ver!), me dei conta da razão de, tanto o filme quanto a peça, me tocarem tão profundamente. Aquele menino cheio de utopia ainda vive em algum lugar dentro de mim. E John Cameron Mitchell consegue falar, através de Hedwig, da sobrevivência torta da utopia num mundo que perdeu a ingenuidade.
Saí do teatro numa noite fria, inconformado no quanto nossas vidas têm sido tragadas com fúria. No quanto a rebeldia ainda é necessária neste mundo excessivamente rastreado. No quanto o nosso teatro está com pouco rock’n roll. No quanto nos tornamos dependentes do patrocínio. No quanto nossa arte se fragiliza ao ser excessivamente negociada. No quanto somos capazes de oferecer ao público algo realmente significativo de nós mesmos, apesar dos obstáculos.
E hoje parece que a queda do Muro de Berlim foi há tanto tempo, muito mais tempo do que só vinte e um anos. E que estamos muito mais velhos. Mesmo os mais novos. Uma amiga um dia me contou de quando viu sua doce e pacata labradora correr na direção de um lago e abocanhar, com fúria, um patinho que estava nadando distraído. Ela entendeu nesse dia a verdadeira natureza da sua cadela. E percebeu que, até aquele momento da sua vida, talvez não tivesse encontrado ainda seu pato, aquilo que a fizesse erguer as orelhas em alerta absoluto e sair correndo pro inevitável.
Inevitável perguntar, por mais clichê que seja: qual é o Muro que precisamos derrubar hoje? O que é capaz de convocar suas convicções mais profundas?

Categorias: Blog. Tags: Alemanha, Hedwig, Muro de Berlim, Processos e Teatro.