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O PROCESSO DE UMA LUTA SILENCIOSA

[Por Evangelo Gasos]

Gostaria de compartilhar uma experiência recente a propósito do trabalho de montagem teatral com um texto bastante peculiar e rico. Trata-se de “O pupilo quer ser tutor”, do autor austríaco Peter Handke.


O encontro com a obra de Handke deu-se ao acaso. Porém, o que me levou a esbarrar com este autor foi algo intuitivo. Eu estava à procura de uma peça que tratasse de uma relação entre um mestre e seu discípulo. Mais além, interessava-me buscar o momento onde ocorre a passagem de um aprendiz a mestre. Aquele instante invisível, sem prenúncio, espontâneo, no qual todos aqueles que mantém uma relação de contato e convivência com alguém “maior” um dia almejam alcançar.


Não é difícil imaginar porque esta ideia me persegue: Eu diria ser este um sentimento sincero pela busca da maturidade artística. A caça pela liberdade de criação. Passamos muitos anos estudando e conhecendo os trabalhos daqueles que, um dia, influenciaram ou foram responsáveis diretos na História da Arte, criadores incondicionais de obras que tocaram, e que ainda tocam, os sentimentos humanos. Entidades capazes de transformar e atingir os outros seres. Iniciamos uma busca pelo singular, pelo autoral através do contato com o que já foi realizado. Convivemos com outros artistas, aprendemos suas lições. E qual será o momento de converter este contato em algo novo? Foi a partir desta investigação, desta relação, deste aprendizado e, consequentemente, do que vem depois dele que estava (e continuo) interessado em questionar.
Ainda quando procurava indicações com amigos de uma obra que tratasse da relação mestre-discípulo, foram-me sugeridos os diálogos de Platão. O que não me estimulou neste “universo platônico” foi seu caráter demasiado retórico calcado na palavra. Um fato era certo para mim: não queria um peça verborrágica, textocêntrica. Foi lendo o livro “Jogar, Representar” para um projeto de pesquisa do qual fui aluno-bolsista no Cap-UFRJ que deparei-me com o título “O pupilo quer ser tutor”. O título era tão claro e direto em relação ao tema que eu procurava que não pude esperar muito e parti para a busca desse texto. Para minha surpresa e entusiasmo, a peça era composta somente por ações. Não havia fala. Aquilo que eu, intuitivamente, buscava existia. Para meu encanto, ao estudar e aprofundar as propostas teatrais de Handke, percebi que suas questões dialogavam fortemente com as minhas demandas.


>>> Sobre Handke
No início de sua carreira como dramaturgo, Peter Handke escreveu o que se costuma denominar de peças-faladas: “normalmente curtos, estes textos não se referiam a algum personagem e não necessitavam de qualquer cenografia. O ator era um simples recitante. Handke incide sobre o tratamento do texto, que não deve produzir um significado preciso. O ato teatral se reduz à produção de um certo volume de palavras, que não se organizam em discurso e que os recitantes trabalham de forma puramente acústica. A palavra é trabalhada como uma massa. O ato teatral nas primeiras peças de Handke trabalha sujeito e sentido, expusos de um sistema linguistico que só se refere a ele mesmo.”*
A peça-falada “Insulto ao público” foi a primeira a ser montada, em junho de 1966. A relação público-cena é invertida, pois os atores passam a observar os espectadores, e em seguida os interpelam e os provocam até atingirem um grau de injúrias e impropérios.
As primeiras peças de Handke constituem uma reflexão sobre a linguagem.
Em 1969 aparece a peça muda “O pupilo quer ser tutor”.

>>>  A peça

Mas de que se trata “O pupilo quer ser tutor”?


O título é extraído de uma fala da peça “A tempestade”, de William Shakespeare. Não vou entrar em detalhes sobre o enredo desta que foi a última peça do grande dramaturgo inglês. Mas a pista que Handke dá ao associar sua obra com esta última de Shakespeare é muito importante. O tempo todo a peça “A tempestade” está falando de soberania, da necessidade de libertação e das relações de poder estabelecidas entre todos os personagens**. A tal frase que virou título da peça de Handke é proferida quando Ferdinando (filho do Rei de Nápoles e pretendente à mão de Miranda), propõe a Próspero, pai de Miranda, queimar uma etapa de tarefas para que tenha então concedida a mão de sua filha. Não aceitando as ordens de Próspero, Ferdinando mostra-se relutante até que “seu inimigo mostre ter mais força”*** . Próspero retruca: “O que? O pupilo quer educar o mestre?”.
Quando me proponho a realizar artisticamente algum projeto, parto sempre de uma questão da qual não possuo resposta. O processo de criação e realização torna-se, então, um caminho para encontrar algumas reflexões sobre o assunto, sem que isto traga um fechamento sobre esta questão. Foi isto que aconteceu também com meu processo de montagem de “O pupilo quer ser tutor”. Para minha surpresa, as descobertas sobre a relação mestre-discípulo enveredaram por um caminho mais violento do que eu esperava.
Aos poucos, fui me dando conta que a relação proposta por Handke não passava por um viés romantizado, e isso se revelou mais interessante aos meus olhos. A relação pupilo e tutor configurou-se como uma sobreposição de gestos. Pequenos movimentos e ações que simbolizavam atos de violência. Um verdadeiro jogo de poder.
Gostaria de mencionar um elemento bastante interessante que se colocou logo de imediato neste trabalho-pesquisa: A autoridade do texto em relação à encenação. Ao ler a peça no papel, tive duas fortes sensações. A primeira, de não haver necessidade de montá-la, pois o texto era tão minucioso e detalhado que, ao terminar de lê-lo, tinha a sensação de já ter visto a peça. A segunda sensação foi mais aterrorizante: como conseguir ser encenador de algo propositadamente (creio eu) autoritário? Como e onde iria conseguir me colocar como artista diante de algo tão concebido e aparentemente fechado? A partir destas indagações, a descoberta posterior só tornou o trabalho mais instigante. Estaria Handke já propondo um embate de forças entre dramaturgo e encenador? A tensão proposta entre os personagens tornava-se viva já na tensão do espaço de criação entre autor da peça e autor da cena. “Como pode alguém tão distante de minha realidade, nosso Brasil de 2010, querer impôr detalhes de cenário e figurino, de formas como o elenco deve atuar?” – pensava eu. Só então pude perceber que este era o real movimento que esta montagem poderia suscitar.
Então, ao invés de partir direto para subversões e negações, me propûs levantar nos primeiros ensaios aquilo que exatamente o texto propunha. E qual foi a minha surpresa: aquilo que se mostrava extremamente fechado e resolvido no texto aparecia aberto e carente de soluções criativas. Era uma falsa autonomia esta que o texto trazia. Faltava muita coisa para transformar o discurso de Handke num ato teatral que funcionasse, que se mostrasse como digno de uma bela encenação. Passei a entender que se tratava de uma forma muito peculiar de um processo de aprendizagem, pois ao aceitar participar das exigências do mestre Handke eu encontrava uma passagem secreta que me levava rumo à liberdade de criação. Quase um caso típico de relação onde um pai age com rudeza com o filho através de um sermão visto como necessário, mas que no fundo, ao final deste processo, o resultado se mostrasse bastante generoso para o filho.

A partir de então, senti-me tendo atingido a tal “chave de interpretação” da qual se refere Meyerhold às tragédias shakespereanas. Nas palavras do grande encenador russo: “Isto será possível depois de termos trabalhado sobre dois ou três fragmentos desta peça, estudando sua forma e reconstituindo, passo a passo, sua composição”**** . E foi exatamente isso que eu fiz: só depois de ter estudado a forma de “O pupilo..” e de ter partido para a reconstituição das cenas como estavam propostas no texto é que me deparei com uma possível chave de interpretação da peça.
O período que se sucedeu a esta descoberta foi muito mais leve, porque consegui justificar para mim as razões pelas quais poderia me sentir autorizado a modificar e completar o texto da forma que eu quizesse, afinal, havia me tornado senhor daquela montagem, a autoridade que poderia responder por cada escolha, cada inserção ou supressão de elementos. Eu estava com Handke ao meu lado, e não mais atrás dele.
Eu poderia desenvolver muitos outros aspectos interessantes que surgiram ao longo do processo de montagem de “O pupilo quer ser tutor”, mas suponho que, para uma leitura de internet, este texto já tenha se tornado demasiado extenso. Mas gostaria de finalizar levantando um outro ponto que se mostrou bastante representativo do embate entre pupilo e tutor: a supressão da fala. Uma peça-muda cria um movimento de questionar o papel da fala em nossas relações: aquele que pede a palavra está abrindo a necessidade de se posicionar, de se colocar no mundo. Aquele que monopoliza a palavra, violenta o direito do outro de se colocar. E quando não há fala? Há ainda sim o discurso. Este independe de fala. Então, o que pode representar o mutismo? Neste caso, antes de mais nada, acredito que silêncio é sinal de respeito.
* CAMION, Arlette. L’antithéatre de Handke in Écrire pour le théatre – les enjeux de l’écriture dramatique. CNRS Éditions. 1995. Paris.
** Existem interpretações que inclusive aproximam esta peça com uma relação de colonialismo entre Europa e América.
*** SHAKESPEARE, William. A tempestade. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2002.
**** MEYERHOLD, Vsevolod. O teatro de Meyerhold. Tradução Aldomar Conrado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1969.

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