Na programação deste 2° TEMPO_FESTIVAL tive a oportunidade de assistir ao documentário “Qual o seu filme de amor favorito?”, de Paulo Celestino, que enfoca o processo de criação do Grupo XIX de teatro para o espetáculo “Arrufos”, que pude assistir em seguida. No último dia da programação, foi divulgado como evento isolado a palestra “Cachaça ou chocolate: um documentário cênico”, que se tratava de um bate-papo com os realizadores do espetáculo “Festa de Separação”, em cartaz no Sesc Copacabana. Devido à dubiedade da programação (que justapunha o release da peça ao horário da palestra) acabamos assistindo um debate sobre uma obra que não vimos: o espetáculo que havia sido exibido antes, enquanto esperávamos para entrar no teatro. A atriz do grupo XIX, Janaína Leite e o diretor de Arrufos, Luis Fernando Marques, foram responsáveis pela montagem de forte teor autoficcional, juntamente com o músico Felipe Teixeira Pinto e o documentarista Evaldo Mocarzel, que comentou a respeito de um projeto que vem realizando, de documentar os processos criativos de cias teatrais e filmar os espetáculos.
A peça enfocava o processo de separação do casal Janaína e Felipe, que partiram da experiência real do término de seu próprio casamento. Não pretendo neste post discutir o espetáculo que não tive oportunidade de ver, mas atentar para essa tendência em documentar os processos de criação, uma vez que, ao que parece, a proposta de Evaldo, assim como o filme de Paulo Celestino, ator do grupo XIX, era não apenas filmar o espetáculo, mas biografar o processo de criação. Mocarzel atenta, em uma de suas falas, para o fato de o espectador que trava contato com a obra não poder acessar por ela todos os conteúdos levantados ao longo de um processo de criação, e que seria muito rico se pudesse acessá-los, mesmo já estando sedimentados na obra. Creio que isso dê origem a duas obras distintas: a obra propriamente, que sedimenta uma série de conteúdos e que oferece ao leitor pluralidade de leituras possíveis, mesmo que escapem completamente a proposta do autor, e outra, que se compõe do registro editado de um processo de criação. Uma terá autonomia em relação à outra, pois creio que o filme interesse não somente a quem assistiu Arrufos.
Há vários focos de interesse por obras que enfocam o processo de criação de outras obras: interesses profissionais, documentais e até mesmo didáticos, profissionais. E também interesse em acessar algo mais íntimo da obra, talvez até algo da ordem do pessoal, as motivações, os impulsos, as inspirações, manifestando um desejo de origem, um impulso biográfico, um desejo de conhecer o caminho que conduziu a obra. Obra que, por sua vez, será ponto de passagem entre a construção pelas mãos do artista e a construção na recepção pelo espectador. Ainda que se tome conhecimento do processo, a recepção será sempre mediada. Há também, dentre os interesses pelos processos, um ímpeto voyerístico. No debate sobre “festa de separação” havia um interesse notável da platéia em saber coisas como “Vocês realmente se separaram?”, “Vocês ainda estão juntos?”, “Vocês realmente são um casal?”, etc. A audiência tende a tingir o objeto artístico com tons de Big Brother, como se, ao enfocar a autobiografia dos atores com dispositivos documentais, uma vez que a obra (que não vi) parece ter caráter híbrido (entre o documentário e a encenação), o interesse do espectador médio se deslocasse para o pessoal. Esta é uma tendência cada vez mais forte, como se a arte já não bastasse, e as pessoas quisessem a vida. A “vida” daquela obra, sua gênese, sua história. Como se as estórias já não valessem sem o “agá”.
Para além do fato de se ter acesso a conteúdos manifestos que na obra estariam apenas latentes, o fato parece apontar para um desejo de conhecer algo que até então lhe estaria vetado, algo que é anterior ao produto. Algo de secreto, algo que também pode fornecer chaves de leitura para a obra, potencializando o prazer do espectador, que ao ver uma determinada cena, relembra sua gênese. Talvez esteja aí uma das fontes de prazer em enfocar esses processos.
De qualquer forma, é rico fazer o programa duplo. E observar o percurso que “Qual é o seu filme de amor favorito?” faz, das considerações filosóficas até a montagem do cenário, da abordagem dos temas debatidos pelos artistas envolvidos até a materialidade da construção do cenário, e, em seguida se deparar com a obra, sedimentando esses conteúdos.