Para o pensador francês Antonin Artaud, o pintor Vincent Van Gogh, em sua obra, consegue tocar o cerne das coisas, chegar nelas aonde ainda não se “estratificaram”, pintar a cena de um crime, onde tudo (a cama, o cobertor, a janela, a vela acesa sobre a cadeira, a própria cadeira) é “devir”, potência de um ato não cometido. Cena onde cada coisa está como que suspensa, como se a qualquer momento algo pudesse acontecer ou tivesse já acontecido. Esse nervo das coisas é cheio, é denso, repleto de expectativa.
O espetáculo “Comida alemã”, do diretor de Cristían Plana, apresenta uma cena potente como a “cena do crime” não cometido de Van Gogh. O que mais me chama atenção nesse espetáculo é a latência de um desespero e de uma agressividade camufladas. Numa caixa em perspectiva (cujo fundo é menor do que a boca, dando a sensação de profundidade), um coro de crianças agrupadas em torno de uma figura materna que disciplina e castra. Ao centro, uma mesa de jantar, ao fundo, um piano e uma escada para lugar nenhum. As figuras estão como que presas no que me fez lembrar uma caixa de música. O que reforça essa impressão é a contenção física dos atores. Mesmo ao dançar como a bailarina dentro da caixa, a movimentação da figura materna é quadrada, dura, pesada. A disciplina dos corpos disciplinados dá a ver um estado de terror, como se a qualquer momento aqueles corpos fossem explodir em carne e sangue por todo o espaço. E, de fato, a partir de certo momento, esses corpos disciplinados, contidos, começam a vazar. A madre, chora: parada, ereta, contida, sem crispar a face, sem mover um único músculo do corpo inteiro: a lágrima é o grito não dado. Uma criança vomita na escada; outra, deixa escorrer pela boca uma baba espessa; um rapaz urina nas próprias calças; uma moça sangra pelo nariz. A pressão se torna tão insuportável que começa a vazar pelos orifícios dos corpos que já não suportam mais.
A energia daqueles corpos é tanta, que poderiam estar dançando freneticamente no espaço, e o fato de estarem parados nos dá à ver essa potência do ato não cometido. A violência latente numa situação de opressão, onde camuflam-se os conteúdos. Neste sentido, gostaria de propor um paralelo com uma situação específica vivida aqui e agora: a da procuradora que espancava uma criança que pretendia adotar e o escândalo nacional que foi o episódio. Não pretendo discutir a cultura germânica, as feridas pós-holocausto, as características de um povo que possibilitaram a ascensão do regime Nacional-Socialista. Estendo e desloco minha reflexão sobre o grupo chileno para a maneira leviana como a mídia trata questões importantes, transformando em produto o que merecia séria reflexão.
A tragédia de uma criança que apanha vira espetáculo. E a obsessão pública em punir os culpados fica somente na necessidade de se “resolver” o problema, pois com o culpado punido, faz-se a justiça e a vida segue seu curso. Até que novamente o problema venha à tona. Depois de milhares de crianças espancadas, violentadas, mortas. Depois de milhões e milhões desviados dos cofres públicos, depois de muitos mortos pela parte corrupta da policia. Porque o problema parece não ser enfrentado. O sensacionalismo que torna normal estampar na capa de uma revista tida como séria, a manchete “A confissão da Bruxa”, transforma uma mulher em personagem de estória infantil, tingindo com tons de ficção a realidade mais pura: a maldade do ser humano. E todos ficam felizes porque sabem que suas pequenas maldades cotidianas estão bem longe de atos monstruosos como os cometidos pela “bruxa”. Só que o ato cometido pela procuradora, é o ato não cometido pelas pessoas normais, ou seja: aquelas que vivem dentro do código ético aceito e acordado pela maioria. Há algo que nos iguala. E me parece que está aí, a chave para essas questões. Todos têm um assassino em potencial dentro de si. A violência nos é comum. Só que há a consciência entre as pessoas ditas “normais”, de que isso não é correto. Trata-se de um acordo ético, de uma verdade construída. E em seguida ajustamos nossas emoções, procurando entender de onde vem tal o qual sensação. Então, eu posso extravasar o meu ódio fazendo aula de kickbox ou comendo doces gordurosos. Porque sei que a violência não constrói, porque sei que cada um possui a sua versão dos fatos e não posso impor minha verdade sobre a dos outros, por mil motivos que me diferem dos assassinos manifestos, etc, etc… Porque somos domesticados por “ficções sociais”, por convenções. Somos, por assim dizer, “civilizados”. Só que há alguns que não possuem pudores em exercitar sua crueldade, embora não tenham coragem de assumi-la. Então, deve-se punir os culpados objetivando extrair disso algum aprendizado, para que não aconteça mais, para que aconteça menos, para que se supere o episodio, e não para que se venda mais revistas. Deixando latentes, na sociedade, essa violência.
Vi a montagem do grupo Chileno para o texto de Thomas Bernhardt exausto e com uma noite em claro nas costas e, ainda que com sono, não pude sequer piscar os olhos durante os 45 minutos de duração da peça. Fui conduzido a um estado de atenção durante aquele período. Atenção para os conteúdos latentes, para coisas que precisam ser olhadas.