Idealizado e levantado com recursos próprios pela Cia. Mungunzá, de São Paulo, o Teatro de Contêiner firmou-se como um polo de cultura em plena região da Cracolândia, no bairro da Luz. Desde a inauguração, em março último, o espaço já recebeu cerca de 15 mil pessoas – um público absolutamente variado, conforme explica o ator Marcos Felipe, integrante da companhia. “Você irá assistir ao espetáculo ao lado do ‘hipster’ da Vila Madalena, da madame de Moema, do morador em situação de rua que ficou com vontade de entrar porque viu a peça através do vidro, ao lado do usuário de drogas em fase de redução de danos… e terá que aprender a lidar com as diferenças.” Em entrevista ao TEMPO_CONTÍNUO, ele fala sobre a idealização do projeto, constituído por onze contêineres marítimos, e sobre como tem sido a operação do espaço nesses cinco meses – incluindo aí o crítico momento em maio passado, quando a polícia militar de São Paulo realizou uma operação na Cracolândia. Confira.
Como surgiu a ideia do Teatro de Contêiner e como foi a escolha do local?
Em junho de 2017, fizemos uma reunião de grupo para discussão de futuros projetos. Nessa reunião, levantamos a importância de, naquele momento, verticalizar nosso campo de atuação na cidade. A verticalização nos pareceu o único caminho potente e possível para o clima político nublado que se instalava em todo território nacional. Já com um apontamento para o protagonismo conservador em todas as esferas do pensamento público que nos levaria, como hoje estamos observando, para o sucateamento de políticas públicas a fim de justificar um “Estado mínimo” e a demasiada promoção de patrimônios e políticas públicas para o capital privado. A partir deste pensamento, construímos um projeto cuja ideia era a criação de um centro cultural na região central de São Paulo. Um centro cultural que colocasse a arquitetura também como foco de discussão. Que trabalhasse na lógica de um edifício que dialogasse com a rua, de dentro para fora, ao contrário dos outros polos culturais da região central, que se perpetuaram desenvolvendo políticas para “dentro”, deixando a população vulnerável sem acesso aos bens culturais e manifestos artísticos desenvolvidos dentro dessas edificações. Deixando o edifício cultural e suas atividades como “ponta de lança” da gentrificação territorial. Fizemos um mapeamento dos terrenos públicos ociosos (sem finalidade pública plausível) no centro de São Paulo, região de atuação da Cia Mungunzá de Teatro, e procuramos o Poder Público para o desenvolvimento da ideia: propor que a Prefeitura de São Paulo nos fizesse a concessão do lote escolhido pelo período de três anos e, durante esse tempo, construiríamos um teatro no local e desenvolveríamos um projeto com os moradores do entorno. Utilizaríamos nossos recursos (por volta de 300 mil reais) para a edificação do local. Cortamos algumas madeiras em pequena escala e começamos a pensar o teatro. Pensar tudo que o edifício teria que abrigar. Depois jogamos isso para um programa em 3D. Visualizamos. Descemos para o litoral de São Paulo e compramos os contêineres. O projeto é simples, trabalha com a perspectiva de um espaço cênico totalmente moldável e que dialoga diretamente com a rua. Da rua, você consegue ver a cena. A cidade vira, então, pano fundo para as narrativas, proporcionando aos espetáculos, em muitos casos, a ressignificação da cena. O teatro foi construído/montado em dois meses.
Como é a estrutura interna?
Há camarim com banheiro e chuveiro, banheiro público acessível aos deficientes físicos (sem divisão de sexo e gênero), lanchonete, área técnica, espaço cênico que permite montagens nos formatos italiano, arena ou semi-arena, mezanino para plateia e quarto para abrigar artistas residentes. Na parte externa temos: palco para shows musicais, área gramada para convivência, playground, uma miniquadra de futebol, espaço para projeção de filmes ao ar livre, um domo geodésico para as mais variadas apresentações artísticas e uma horta hidropônica (iniciativa de um comerciante vizinho ao espaço).
Como a companhia se divide na gerência do espaço?
Nossa organização se deu de forma orgânica. Nos dividimos nas atividades artísticas e de gestão do espaço. Ambas as atividades vão se retroalimentando. Para nós, quando o público chega e nós mesmos que estamos na lanchonete, na bilheteria, limpando o espaço… a peça já começou. Nosso encontro já está concebido e potencializado antes mesmo de começar a peça. O público se identifica com o formato colaborativo da ação e, acredito eu, nossa arte ganha outro patamar de potência a partir do momento que eu crio um vínculo de cuidado e afeto com o público que antecede a peça teatral. Resumidamente, hoje, nós do grupo, nos desdobramos para tocar projetos artísticos e administrativos sem que um se dissocie do outro. Entendendo ambos como processo de encontro, potência, afeto. Retirando completamente o limite entre arte e vida. Quando não estamos em São Paulo, um time de colaboradores entra em ação e toca a utopia adiante.
Como tem sido a curadoria do espaço? Como a programação é escolhida?
A curadoria é feita de forma orgânica. Alinhamos as propostas enviadas (via site) e as vontades do nosso grupo. Estamos trabalhando com a ideia de ocupação, cujo convite sempre é feito para um artista ou grupo que, por sua vez, programa o espaço em determinado período. Isso faz com que o teatro tenha uma programação plural, não engessada. Exemplo: estamos concluindo a Mostra Teatro de Contêiner Convida Dagoberto Feliz, para a qual fizemos um convite para o Dagoberto e ele programou o espaço com seus trabalhos pelo período de trinta dias. A programação fica dinâmica. Recebemos desde grupos de alunos que ele dirigiu dentro da escola, até espetáculos já consagrados no cenário teatral. Isso permite uma diversidade incrível e faz com que o espaço seja visitado por todas as camadas da sociedade, sem contar o fato de que possibilita ao artista que suas obras sejam colocadas lado a lado. A ideia básica é ocupar. Ocupar simultaneamente com grupos que tenham peso histórico, político e estético com grupos que estejam começando.
As particularidades do teatro, por ser um teatro “atípico”, influenciam de alguma forma a escolha da programação?
Acredito que os grupos que mandam propostas já entendem o teatro dentro das suas diferenças. E, quando o convite parte de nós, sempre chamamos os artistas para o entendimento não só das dimensões do palco, mas também do projeto inteiro. Isso, ao nosso ver, fará com que a apresentação, seja ela qual for, tenha outro significado para aqueles artistas.
Como tem sido a receptividade do público, especialmente considerando que o teatro está localizado numa área degradada da cidade?
Elaboramos um espaço que se lança como um “mediador de conflito”. Aqui não é ou será um local para um segmento único da sociedade, principalmente no campo econômico. Não nos interessa que nossos vizinhos sejam realocados para as bordas da nossa cidade fazendo com que o centro fique “revitalizado” e, por consequência, nosso teatro seja “valorizado” mercadologicamente. Não queremos servir ao higienismo social. Nossa estadia no Centro de São Paulo serve, inclusive, para desmistificar a ideia pré-concebida que se tem sobre este lugar. Aqui há uma ausência de políticas públicas. Aqui há uma criminalização da pobreza, não se vê redes de proteção do Estado, apenas aparato policial exercendo violência. Não é bonito. Ninguém pode achar bonito pessoas dormindo no chão ou consumindo drogas. Contudo, não é violento. A polícia nesse local trabalha para manter a lógica global de genocídio de pessoas pobres e pretas se defendendo na falácia de “guerra às drogas”. Nossa estadia aqui é exatamente na contramão. Você irá assistir ao espetáculo ao lado do “hipster” da Vila Madalena, da madame de Moema, do morador em situação de rua que ficou com vontade de entrar porque viu a peça através do vidro, ao lado do usuário de drogas em fase de redução de danos… e terá que aprender a lidar com as diferenças. O projeto recebeu 15 mil pessoas em cinco meses e conta com uma curva ascendente de público em situação vulnerável e esquecido pelo Estado.
Como a recente operação policial na Cracolândia, em maio, afetou o funcionamento do teatro?
Afeta porque somos serem humanos. Afeta porque somos ativistas da Cracolândia e é duro você perceber que “objetivos obscuros” promovem, por meio da violência, uma política higienista trabalhando em função da especulação imobiliária. Afeta porque entendemos que a política de redução de danos é melhor caminho. Afeta porque estamos vendo diariamente a velha política do patriarcado sendo colocada em prática com aval de uma parcela conservadora da sociedade, cujos resultados em outrora foram reconhecidamente ineficazes. Afeta o não entendimento de que o consumo de drogas está diretamente ligado à falta de políticas públicas e ao nosso sistema econômico voraz com os mais pobres. Mas seguimos assim, sendo afetados e afetando.
Quais são os projetos futuros da companhia?
Estamos em sala de ensaio para levantamento cênico de um próximo trabalho que terá direção da Georgette Fadel. O trabalho tem estreia prevista para março de 2018, ano em que completaremos uma década de atividades.