Por Thaís Barros |
Dentro de mim há um bocado de histórias que sinto necessidade de contar. São coisas que tenho visto e que me tocaram e espero que mais alguém as tenha visto do mesmo modo que eu. E sim, tenho raiva de tudo, assim como você tem, ao seu modo, mas minha raiva é parte do mecanismo que está direcionando a narrativa de minha história.
Will Eisner
“poderosa vida não orgânica que escapa” surgiu como meu projeto de formatura em Direção Teatral na UFRJ no fim de 2016. Lá eu sabia que queria contar uma história que tivesse como ponto de partida o prefácio da graphic novel “O Edifício”, de Will Eisner, e que usaria referências teóricas sobre histórias em quadrinhos como ferramenta de criação para os atores e para toda a equipe que estivesse envolvida. Seis meses antes de entrar em sala de ensaio eu precisava escrever um projeto bem cheio de detalhes sobre a minha peça que ainda não existia, que ainda não tinha elenco, direção de arte, diretores de movimento, diretor musical nem produtor. Tinha um dramaturgo, da companhia que faço parte, que escreveria uma dramaturgia mesmo sem saber do que se tratava. E tinha eu.
Essa exigência que parecia assustadora foi se revelando o ponto de partida necessário para que a peça deixasse de existir no meu imaginário e passasse a se concretizar a cada linha que eu escrevia nesse projeto. Eu precisava dizer de onde essas ideias surgiram – e seus respectivos motivos – justificar meu projeto e dizer quais eram seus objetivos, qual metodologia eu usaria em sala de ensaio com meus atores, fazer um cronograma de atividades e além disso era aconselhável que eu anexasse referências visuais no fim de tudo. Parece que toda a nebulosidade da minha cabeça – e da minha fala, já que antes da escritura do projeto eu jamais consegui explicar para alguém como seria a peça – tomou forma a partir do momento que a palavra PRAZO chegou na caixa de entrada do meu Gmail.
Uma das primeiras coisas que fiz quando comecei a ter aulas no campus da Praia Vermelha na UFRJ, em 2010, foi pesquisar sobre a história daquele espaço. O que acontecia ali, quais funções aqueles prédios tinham quando foram erguidos. Descobri que ele surgiu em 1842 e passou de hospício à risco de ser demolido, para então virar universidade. O que talvez justifique a arquitetura de muitas salas, que parecem ser mal estruturadas para um observador menos detalhista. Sempre me interessei pela história das edificações como quem fica curioso com a história da vida de alguém com mais idade, que já viu coisas que aconteceram quando muitos de nós não éramos nascidos. Aqueles prédios, como muitos outros, já foram testemunhas de acontecimentos que estão fora daquilo que o ser humano julga como importantes.
Em paralelo a tudo isso eu lia quadrinhos. Muitos. Uma expressão artística que durante muito tempo foi encarada como uma literatura marginal, feita para crianças ou para aqueles que não teriam capacidade intelectual suficiente para desfrutar de uma obra literária consagrada. E conheci Will Eisner, um autor que desenvolveu uma graphic novel cujo o eixo central da narrativa era um edifício, afinal “não é possível que, tendo feito parte da vida, eles não absorvam de alguma forma a radiação proveniente da interação humana”, como ele mesmo escreve no prefácio de “O edifício”. Eu intuía que essa obra seria certamente parte do meu projeto, mas não me interessava em transformar a graphic novel em dramaturgia e encená-la. A história de Eisner já funcionava muito bem nas páginas, e seria impossível trazer para a cena a poesia desenvolvida por ele através da arte sequencial.
Foi então que entendi que, na verdade, eu não queria contar a história que Eisner contou, e sim criar uma nova a partir dela. Eu queria que o olhar de Eisner fosse o filtro que precisávamos para olhar para a cidade. Afinal, ela é cenário de muitas – ou quase todas – graphic novels escritas e desenhadas por ele, mas sempre com um olhar pontual sobre cada ponto que compõe uma grande metrópole, e nunca pela massa de movimentos, luzes e barulhos. É como se a cidade fosse composta por cada aresta desenhada por ele, porque só assim é composta uma página.
Aliei a intuição que eu tinha de Eisner com o meu encantamento por seus traços e decidi então que os quadrinhos não estariam presentes só como ponto de partida para criar uma peça de teatro. Eu levaria minhas leituras e meus estudos sobre a nona arte para a sala de ensaio e para a minha equipe e dividiríamos impressões, estudaríamos referências teóricas a respeito, para só após isso colocar nosso corpo em jogo na sala de ensaio. Eu não sabia exatamente como os quadrinhos seriam nossa ferramenta de criação, confesso. Mas o meu maior interesse era dividir esse universo com a minha equipe e entender como (e se!) isso reverberava em cada um. Meu objetivo era entender como isso estimulava nosso modo de criar e alterava nosso ponto de vista, mesmo sem entender ainda como seria o resultado estético de tudo isso. Eu não me importava se o espectador conseguiria perceber todo esse percurso. Eu só queria contar uma história a partir daquilo que nos movia.
E para isso acontecer, foi necessário que um prédio de três andares decidisse desabar. E falar sobre isso, já que ele entendeu que só assim poderia ser ouvido pelos seres humanos. Eu não sabia de nada disso quando abri o calendário desesperada com o prazo para entrega do meu projeto de formatura, e provavelmente eu não reuniria pessoas tão queridas para criar algo a partir de quadrinhos e edifícios. Provavelmente eu nem pensaria que seria possível criar algo a partir de quadrinhos e edifícios. Hoje eu percebo a importância dos prazos.
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Thaís Barros é diretora de “poderosa vida não orgânica que escapa”, que está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal, no Rio, até 24 de setembro de 2017.
[foto: Thaís Grechi]