Por Breno Motta |
Acidente. Aceleramento. Arraso. Assédio. Abuso. Atravessamento. Agressão. Atordoamento. Atabalhoamento. São tantos atropelos. Um acidente na trajetória de uma criança de nove anos de idade. Que nem sabia ainda o que era a palavra masturbação, o atrito entre suas mãos e seu órgão sexual, a fricção, o contato. E é sobre um corpo friccionado precocemente do que se trata o espetáculo “Fricção”. A trajetória de tantos corpos que foram atravessados. Milhares de meninos e meninas assediados por ano em nosso país. E que se tornam, por vezes, solitários. Perdem a fala. A capacidade de socialização. Ou se tornam agressivas. Ou sexualizadas antes do tempo. Como olhar para esses corpos? Como cuidá-los? Como enxergá-los e entendê-los?
“Fricção” é um projeto que existe desde 2011 e, depois de anos de lapidação, surge a partir desses questionamentos. E do olhar para a minha própria história, para o início de uma puberdade cheia de culpa e segredo. Que mexeu com hormônios de um ano para o outro e deixou cicatrizes que foram abertas tempos depois, aos 32 anos. Uma colega de profissão me disse, sem muito tato, que não entendia o por quê de eu realizar um trabalho solo ainda tão jovem, que isso soava egoísta. Minha garganta secou, mas a resposta também veio seca: “Não é uma questão de tempo ou de satisfação. É uma necessidade.” E eu acredito nos trabalhos que são necessários. Os projetos que RECLAMAM. E só na vida adulta, através de uma peça de teatro, esta reclamação veio à tona.
O texto nasceu quando olhei para trás e me lembrei. De uma amiga da escola assediada por seu tio. Dos meninos do meu bairro abusados por homens ou garotos mais velhos. De uma menina de 8 anos de idade, de Vitória, que, no ano de 1973, foi sequestrada, violentada e cruelmente assassinada por um grupo de jovens de classe média alta da capital do estado do Espírito Santo. Revi histórias em minhas pesquisas, e também obras como “Festa de Família”, “O Funeral” e “A Caça”, de Thomas Vinterberg, e tudo isso me fez trabalhar a escrita de forma muito íntima.
E de um processo solitário da escrita, outras mãos começaram a tocar este projeto. Quatorze pessoas envolvidas na equipe. Dezesseis mil denúncias de violência sexual contra vulneráveis em 2016. Trezentas e cinquenta mil crianças e adolescentes assediados anualmente envolvidos. Era um projeto pessoal, sim, mas também universal. Exatamente onde a diretora do espetáculo, Morena Cattoni, e eu gostaríamos de chegar. Na universalidade. Porque é autoral, é sobre a trajetória do meu corpo, mas, ao mesmo tempo, sobre tantos outros corpos transformados bruscamente, apressadamente, sem cuidado.
Estar solo em cena, durante os ensaios, requer reencontrar as brincadeiras de criança, os meus carrinhos fricção. Mas aonde estaria a virada nessa história que estou contando? Através de uma provocação que definiu os rumos da dramaturgia do espetáculo, o Diogo Liberano me fez ir de encontro a todos os abusadores. E eu tentei fugir – nada mais óbvio, pois o silêncio é uma constante na vida de um ser que foi abusado. Mas isso foi determinante para que esse personagem, já adulto, pudesse falar, retomar as rédeas do seu corpo e olhar com mais carinho e confiança para as suas relações na atualidade.
Ensaiamos dentro de um colégio durante dois meses. Observávamos as crianças se movimentando e, todos os dias, tínhamos uma trilha sonora que parecia confeccionada especialmente para os nossos ensaios. Os gritos, risadas, choros daquelas crianças estavam todos ali, fazendo com que nos sentíssemos ainda mais inseridos nesse universo. Eu observava os desenhos colados nas paredes da escola, os pais que vinham pegar seus filhos depois da aula, a rapidez dos movimentos infantis. E acredito que isso foi determinante para que pudéssemos – eu, Morena e a diretora de movimento do espetáculo, Fernanda Más – trabalhar a transformação do meu corpo, sem infantilizá-lo, mas fazendo com que ganhasse a vivacidade desses meninos e meninas. Exige força física, precisão, exige brincar com o próprio corpo e redescobri-lo, torná-lo novamente um corpo selvagem, pronto para correr ou simplesmente parar e contar uma história.
Em “Fricção”, eu conto histórias. Misturo realidade e ficção. Abro minhas cicatrizes para reclamar. A princípio, num processo absolutamente solitário, já que este foi o sentimento que permeou o final da minha infância. Mas a direção de Morena e a criação coletiva, com pessoas que me são muito caras, fez com que o meu olhar se abrisse ainda mais para os atropelos e acidentes e cicatrizes de muitas outras pessoas.
Talvez eu tenha duas respostas para a minha colega de profissão. A primeira é que este é um trabalho solo, mas não o faço sozinho. Em um ano em que o teatro e a cultura estão sendo relegados por nossos governantes, precisamos continuar a produzir. Ainda mais resistentes. E juntos. E a segunda é: apenas olhem para os corpos dessas crianças. Peguem em suas mãos, e caminhem com elas, e olhem suas cicatrizes. Para que todos aqueles que sofreram abuso sexual possam revelá-las. E aí veremos que elas são curáveis. Que ficarão as marcas. Mas que o corpo continuará. E seguirá adiante.
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Breno Motta é ator e também o autor de “Fricção”, solo que estreia em 15 de julho no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Rio de Janeiro
[foto: Elisa Mendes]