A 52ª Bienal de Veneza, cuja exposição central All the world’s futures (Todos os futuros do mundo) é curada pelo nigeriano Okwui Enwezor, já diz a que veio na primeira sala do pavilhão Giardini, assinada pelo artista italiano Fabio Mauri. Em sua parede circular, quadros com a frase ‘The end’ (O fim), se repetem diversas vezes e em diferentes estilos. No centro do espaço, um muro de malas de viagem (entitulado “O muro ocidental ou das lamentações”) e uma escada extensiva que, não alcançando os afrescos da abóbada nem o topo da sala, serve mais como convite ao salto que à ascensão. Completando o hall, uma grande fotografia de Pasolini sentado em um tribunal vazio, acompanhado apenas por Fabio Mauri, sob um título que evoca “a evidência do que é o fascismo”. A imagem, encoberta por um plástico de obra, encerra o tom da recepção aos futuros do mundo: político, distópico, apocalíptico… o porvir aqui não é para os fracos.
(A primeira sala, o fim declarado por Fabio Mauri © Inexhibit, 2015)
A primeira impressão se confirma nas salas seguintes: L’homme qui tousse (O homem que tosse), de Christian Boltanski, vira sinônimo de um futuro doente, o teto desabado (Roof Off) de Thomas Hirschhorn coloca em cheque a sala de exposição, e a árvore morta (Dead Tree) de Robert Smithson nos faz lembrar que a «land art» (e a natureza) não sobrevivem ao cubo branco. A morte também é evocada pelas pinturas de crânios de Marlene Dumas e pela ganhadora do Leão de Ouro, Adrian Piper, que repete a frase “Everything will be taken away” (Tudo será retirado / levado embora) linha após linha, sobre um quadro negro escolar com moldura dourada. A cada obra escolhida, a intenção de Enwezor em expor a tragédia humana fica mais evidente, embora a forma didática como a narrativa tende a se construir possa, ao mesmo tempo, estancar a força que algumas destas obras teriam por si só. Ao mesmo tempo, o curador é conhecido por suas preocupações pela diversidade política, social e por uma visão firmemente anti-capitalista, o que pode explicar a insistência de seu pessimismo na ilha-fetiche que se tornou Veneza.
(A árvore morta de Smithson e o teto desabado de Hirschhorn © Inexhibit, 2015)
Neste contexto, a maior expressão contra o capital talvez esteja na leitura da obra maior de Karl Marx, que é feita diariamente numa sala de exposição transformada em auditório. Porém aqui, novamente, a estratégia funciona mais como efeito que como ação. Ao preço de 20 euros por dois dias de visitas às exposições, assistir a uma leitura, ainda que parcial, do livro, significa abdicar de uma visita completa aos 30 pavilhões do Giardini. Mas o auditório também é uma espécie de coração da exposição central, e dialoga com o vídeo KAPITAL, de Isaac Julien, com as imagens populosas ou inabitadas (como o Oceano de “Ocean II”) de Andreas Gursky e com a enquete World Poll de Hans Haacke, que pede nossa opinião sobre assuntos ligados à política global e propõe perguntas como “Você acha que o patrocínio de bancos / corporações interfere no tipo de exposição apresentada por museus e em relação ao que é incluído ou omitido?” — para a qual eram permitidas as respostas “Sim, de alguma forma”, “Sim, bastante”, “Não, nem um pouco” e “Não sei”. Fechando o percurso do capital, o representante do pavilhão da Inglaterra na bienal de 2013, Jeremy Deller, é quem chega mais longe e melhor na crítica à nossa sociedade pós-industrial: uma jukebox que reproduz sons do interior de fábricas e uma coleção de fotos de operárias do início da industrialização dividem seu espaço com um dispositivo usado pelos funcionários da Amazon para gerenciar o estoque, mas que ao mesmo tempo controla a localização e a eficiência dos mesmos, e com uma bandeira com a frase “Hello, today you have day off”, que é enviada para trabalhadores sob o contrato de “zero horas”, uma medida em vigor no Reino Unido na qual o contratado pode ser convocado para trabalhar a qualquer momento e praticamente sem direitos trabalhistas.
(Ocean II © Andreas Gursky)
(Entrevista de Jeremy Deller sobre sua sala de exposição)
No Arsenal, o discurso se estende com uma profusão de esculturas, instalações e vídeos que, de certa forma, exaurem o sentido político da exposição e que, apesar de coerentes, põem à prova a paciência do espectador — especialmente no aspecto quantitativo. O ponto alto deste pavilhão são os vídeos — Harun Farocki, artista e documentarista checo que morreu em julho do ano passado e é homanageado com uma sala repleta de seus filmes, Steve McQueen, artista e diretor inglês que em “Ashes” projeta imagens de um jovem deslumbrante de um lado da tela e de seu funeral (dez anos depois) do lado oposto, e Mika Rottenberg, em sua estreia na bienal, com NoNoseKnows, um vídeo ficcional sobre a produção de pérolas na China. Merecem destaque também os desenhos da russa Olga Chernysheva, um deles com a frase “In a techno-world the human body begins to play the role of nature” (Em um mundo tecnológico o corpo passa a fazer o papel da natureza), que apresenta uma multidão em uma escada rolante. Adrian Piper também está presente com “The Probable Trust Registry”, com três recepções de escritório na qual funcionárias imprimem certificados para os visitantes. Neles, podemos declarar que “sempre fazemos o que prometemos”, que “somos muito caros para sermos comprados” ou que “sempre falamos sério”.
(O jovem filmado por Steve McQueen, que no lado oposto da tela é enterrado © Kings Review, 2015)
Segundo Enwezor, a exposição é um espécie de diagnóstico do mundo atual. E o que intriga nesta expressão é justamente seu sentido estático de apresentar um fato — ao “diagnosticarmos” o mundo, ficamos pasmos diante da doença, mas não sentimos ter as “chaves” para a solução. Repleta de alusões à má conduta humana, a mostra parece esquecer que todo diagnóstico pressupõe a existência de um especialista, que prescreve sintoma e tratamento, e que julga como incapaz o sujeito da sua análise. Em Veneza, todos os futuros do mundo são fins e, como fenômenos imóveis, não convidam para a ação, mas para a contemplação. Mas aqui a solução também pode estar em olhar para a ironia de um título digno da franquia James Bond e aceitar o diagnóstico de uma doença terminal, à qual nenhum protagonista sobreviverá — tipo Game of Thrones — e à qual temos que nos acostumar.
(Imagem simbólica durante a abertura da Bienal, na qual convidados “vips” foram surpreendidos pela queda da ponte que leva à Fondazione Prada © La Nuova di Venezia e Mestre, 2015)