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Mitos da Nova Música #2

Mitos da Nova Música #2
[a serem desmistificados]

Mito 2: Os músicos da Nova Música são DJs

Em ensaio onde reflete sobre a arte produzida nas últimas décadas do século XX, o curador francês Nicolas Bourriaud elabora uma equivalência entre as figuras do artista, do DJ e do internauta. Em comum, as três práticas realizariam invenções de itinerários por entre a cultura. Eles seriam, com isso, semionautas, na medida em que produziriam percursos originais entre os signos pré-concebidos de nossa cultura. Isto é, o DJ, o artista e o internauta produziriam a partir de produtos e formais culturais já disponíveis, apropriando-se deles e inserindo-os em contextos diversos. A isso, Bourriaud denomina de “arte de pós-produção”.

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Gostaria de problematizar esta tese levando em consideração as apresentações do dinamarquês Frisk Frugt e dos brasileiros Caron-Campello, ambos integrantes da programação oficial do Novas Frequências 2014.
Antes, porém, caberia, de cara, questionar algumas premissas de Bourriaud. Em primeiro lugar, a hipótese da produção artística contemporânea não lidar com matérias-primas. Na realidade, o argumento se baseia em uma má-interpretação de Bourriaud a respeito da noção econômica de “setor terciário”. Segundo o autor, ele se diferiria do setor industrial ou agrícola por não produzir matérias-primas. A comparação parece se basear, todavia, em um equívoco conceitual, na medida em que alguns setores industriais e o setor agrícola correspondem à atividades econômicas que estão incluídas sob o guarda-chuva do setor primário, este sim, responsável pela produção das matérias-primas. Tanto o setor secundário quanto o terciário lidam com tais matérias-primas, sendo o primeiro responsável pela transformação destas em produtos de consumos e o segundo em serviços, isto é, bens intangíveis de consumo.
O que parece ser um mero virtuosismo conceitual revela, todavia, a inconsistência do argumento de Bourriaud. Pois, todos os setores, inclusive o terciário – onde se enquadram as atividades ditas de pós-produção – lidam com matérias-primas.
Ora, dirão alguns, “pós-produção” foi pós-produzida por Bourriaud. O autor se apropriou do termo, propondo um novo campo semântico a ele. De fato, ele se refere aos “percursos originais” por entre formas dadas, que questionam a “originalidade” que funda a arte moderna. Como ler então a originalidade da pós-produção, encontrada em Rirkrit Tiravanija, Liam Gillick, Félix González-Torres, dentre outros artistas cujas obras são objeto analítico do autor?
Não se está defendendo aqui a ideia de que jamais os artistas (estes e outros) lidaram com ideias, formas e produtos pré-existentes. Defende-se justamente o contrário. Quando, na História da Arte, tal fato não aconteceu? É claro que o mito da originalidade moderna assombrou boa parte dos últimos séculos, em especial o modernismo norte-americano. Mas ele foi derrubado, na medida em que se vincula à ideia de original e não de origem – ao menos se consideramos as reflexões a este respeito de Rosalind Krauss. Isto faz toda a diferença. Pois, o que parece intacto aí é justamente o sentido de origem enquanto criação, mesmo que seja de um nome (e aqui refiro-me tanto aos poetas quanto a Thierry de Duve) ou de uma escolha (claro, Duchamp).
Ou por acaso as obras renascentistas não apresentariam os mesmos motivos – Adoração dos Magos, Madonna etc. – variando suas formas (por sua vez, baseadas em releituras das conquistas greco-romanas)? Este não seria ainda o caso do momento pós-moderno, conforme nos informou Fredric Jameson já há alguns anos, onde impera o pastiche, isto é, a paródia pálida sem impulso satírico? Arthur Danto não enfatizaria também, por meio da apropriação de David Reed de stills de Hitchcock, o “desaparecimento do puro” que caracteriza o nosso “momento pós-histórico”? E até mesmo Lévi-Strauss não estaria contemplando esta pós-produção ao definir a bricolagem como um processo de deslocamento de termos de um sistema classificatório para outro, gerando significados novos em função dos diversos arranjos obtidos? Que o artista seja um semionauta, na medida em que se apropria de formas (sejam estas concretas ou abstratas), disso parece não restar dúvida. Agora, que ele seja equivalente às figuras do DJ e do internauta, há que se duvidar. Nada contra, a priori, a estas duas figuras (eles também são semionautas).

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Mais do que lidar ou não com matérias-primas, os artistas do século XXI definem, segundo um processo mais ou menos rigoroso, a natureza de suas matérias-primas, sejam elas commodities ou não. Se não estamos mais na era de um purismo do medium, tal fato não nos desautorizaria a desconsiderar a grande quantidade de artistas que continuam empenhados em processos de transformação, em formas de produção criativa que estão além (ou aquém) dos preceitos normativos e alienantes da repetição do trabalho mecânico. Desse modo, muitos músicos podem ser DJs, mas a figura do DJ não dá conta das inúmeras possibilidades do músico na contemporaneidade (por mais até que o DJ seja uma figura tipicamente de nosso tempo). Para comprovar tal hipótese, eis que chega o momento de lançarmos alguns exemplos.

 

Pensemos no Frisk Frugt (Frutas Frescas). A apresentação do dinamarquês baseia-se em um instrumento construído pelo próprio músico, um pequeno órgão de flautas infantis conectado com um pequeno teclado por meio de uma espécie de aspirador de pó invertido. O toque no teclado então dispara o aparelho de ar para as respectivas flautas, produzindo-se, deste modo, o som. Trata-se de um dispositivo que dialoga diretamente com a tradição cultural protestante dinamarquesa, haja vista que no país natal de Anders Lauge Meldgaard o instrumento de teclado mais antigo é item obrigatório nas igrejas. Neste caso, o dispositivo se desnuda de sua grandiosa escala aurático-religiosa, assumindo um tamanho mais modesto, ocupando apenas uma parte da mesa (que o músico esteja desenvolvendo um órgão para instalar em sua casa, na Dinamarca, só reforça a aproximação do artista ao artíficie). Não bastasse isso, Meldgaard lança mão de canções folclóricas dinamarquesas, cantando-as na língua natal (seguidas de traduções escritas em papéis e lida por membros escolhidos da plateia) acompanhado por um pequeno amplificador chinês especialmente fabricado para karaokês. Seria Meldgaard um DJ? Ou um músico, um artíficie e um DJ?

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Já os brasileiros Caron-Campello, em especial Jean-Pierre, tensionam composição e improviso a partir de um embate direto entre músicos e instrumentos. O piano preparado de Caron, contendo tabuleiro de xadrez, pratos de baterias, baquetas, papéis, dentre outros elementos, o filia tanto a John Cage (a quem se atribui, de fato, a “invenção” do piano preparado) mas também a Villa Lobos (em especial, Choros no. 8, de 1925, cuja partitura apresenta instruções para que o pianista coloque pedaços de papel entre as cordas e os martelos). Se há um conjunto de objetos-instrumentos ao lado dos clássicos piano e violão, não há, por outro lado, sintetizadores, samplers, nem mesas de operação. Talvez não seja imprudente dizer que o risco deste tipo de empreitada é tamanho (maior até do que os idiossincráticos tematizados no post anterior), na medida em que parte de um contraste imanente entre músico e instrumento, sem que os ruídos não se refiram a nada que não seja eles próprios (pense nos diários sonoros de Aiki Onda e também nas operações espaciais de Rashad Becker). Caron-Campello seriam DJs?

Dito isto, voltemos ao mito: os músicos da Nova música são DJs? Sim e não. Sim, caso a definição de DJ extrapole a sua definição habitual e signifique semionauta (aqui, há que se perguntar quem, mergulhado na cultura ocidental, não o seria?). Não, na medida em que são músicos, compositores, programadores, artíficies… E (em alguns casos) também Djs.

Categorias: Blog. Tags: Anders Lauge Meldgaard, Arthur Danto, Caron-Campello, carrossel, David Reed, Duchamp, Félix González-Torres, Fredric Jameson, Frisk Frugt, Hitchcock, John Cage, Lévi-Strauss, Liam Gillick, Nicolas Bourriaud, Novas Frequências 2014, Rirkrit Tiravanija, Rosalind Krauss, Thierry de Duve e Villa Lobos.