Nova York é um daqueles epicentros do mundo que todos merecem a oportunidade de visitar pelo menos uma vez na vida. É uma cidade para todos os gostos e tem muito de tudo para todo mundo. Para mim, ela borbulha cultura, vanguarda e inovação.
Visitei em maio de 2014, peço perdão com o atraso na entrega do texto, mas antes tarde do que nunca! Abaixo segue um pouco sobre cada um dos cinco espetáculos que assisti – todos alternativos e em destaque na Broadway.
Mothers and Sons
Este espetáculo teve Roberta Pereira como uma de suas produtoras, uma colega de escola – uma das poucas pessoas com quem subi para dividir o palco como ator – em uma de suas primeiras produções na Broadway e já recolhendo nomeações ao Tony Awards, incluindo melhor atriz e melhor peça. Contrário ao que se espera na Broadway, Mothers and Sons não é um musical. O autor é o premiadíssimo Terrence McNally, famoso por avançar os temas LGBT através de suas obras. Este é um texto atual, onde vemos as normas do casamento se transformando pelo mundo a fora em favor do reconhecimento da união gay. Este tema está tão falado que até a ONU anunciou recentemente seu reconhecimento, com a intenção de pressionar países que limitam ou até reprimem os direitos humanos, indiscriminadamente.
Um drama cômico, Mothers and Sons se passa na sala de estar de um luxuoso apartamento e é o primeiro espetáculo na Broadway a ter uma família formada por um casal homossexual, de casamento legítimo e reconhecido, e seu filho, também legítimo (de sangue de um deles). Visitados pela mãe do falecido ex-namorado de um dos maridos, uma mulher conservadora de raízes tradicionais, a história desenrola a relação mal-resolvida entre a mãe e seu falecido filho, buscando compreensão, paz e resolução.
Interpretada estelarmente pela atriz Tyne Daly, a mãe é uma daquelas personagens inesquecíveis. Ela é estranhamente carismática dentro de sua sisudez, tirando risos e lágrimas do público. Engessada pelas raízes de onde nasceu e de sua geração, ela é homofóbica e não compreende as diferenças. Ela vem a Nova York para visitar o ex-namorado do seu filho que faleceu de AIDS há muitos anos, e entregar-lhe o diário que seu filho mantinha. Bem, esse é o pretexto.
As intenções e os relacionamentos mal-resolvidos da mãe são revelados sequencialmente de forma a apresentar um debate muito lúcido sobre os temas da homossexualidade, da homofobia, da AIDS, do casamento gay e da adoção por famílias gays. De ideias e opiniões claras, o espetáculo dá uma aula sobre estes assuntos e apresenta personagens iconográficos de um novo formato de família (no século XXI) para exemplificar emocionalmente e historicamente mães e filhos.
Queen of the Night
Queen of the Night é um espetáculo interativo num espaço alternativo, em linha com os espetáculos do grupo Punchdrunk, tal como o Sleep No More. Tanto que ambos tiveram como um de seus produtores Randy Weiner, conhecido por um estilo de espetáculo de imersão/interação que experimenta com a relação de palco/plateia. Ele também é o responsável pelo espetáculo The Donkey Show (que é uma versão de Sonho de uma noite de verão montado dentro de uma discoteca/rinque de patinação), como também da famosa casa noturna de espetáculos, The Box.
O público é encaminhado a um grande salão nos subterrâneos de um hotel, um cabaré chamado The Diamond Horseshoe Club. Recebidos com uma taça de vinho, o público é acompanhado até os assentos. São diversas mesas de jantar suntuosamente colocadas (repletas de comida e bebida) distribuídas em torno de um palco oval no centro do salão. No palco, uma mulher mascarada – a Rainha da Noite. O nome do espetáculo é uma clara referência a ópera de Mozart, A Flauta Mágica. Porém, a personagem é uma das poucas e soltas relações que vemos ao clássico. A proposta é sensorial: interagir com o público e elenco, assistir, ouvir, comer e beber muito bem e a vontade, sentir….
Logo que entramos entendemos que todos que trabalham e servem no restaurante são atores e que o espetáculo inunda o salão, além do palco. Revivendo a experiência do famoso “dinner theater”, composto por diversos números acrobáticos e de mágica, muitos contando com a participação do público. Esse é um espetáculo circense, sem falas, com exceção dos momentos em que espectadores selecionados são levados, individualmente, para algum canto para terem uma experiência exclusiva de interação com o elenco (podemos chamar de sideshows). Durante as performances somos servidos um jantar deliciosamente exagerado, repleto de carnes e lagostas, regado a muita bebida. Para quem quer ter uma experiência gastronômica diferente – saborosa e espetacular – recomendo este sem dúvida.
Fly by Night
Escrito por universitários e primeiro apresentado em 2009, Fly By Night teve sua estreia em NY em junho de 2014, sendo apresentado no Playwright Horizons, que é conhecido por apoiar e incubar novos autores de teatro. O musical é uma pequena pérola, uma comédia-romântica deliciosa, divertida e emocionante de assistir, com canções cativantes, elenco carismático e texto inteligente, envolvente e leve. A única coisa que tem de alternativo é que é um espetáculo novo escrito por novos autores, recém chegados ao mercado. Uma envolvente obra sobre amor jovem, contando a história de um vendedor de sanduíches com sonhos de sucesso como cantor e compositor em Nova York, que se apaixona por duas irmãs que não poderiam ser mais diferentes uma da outra, este musical segue uma divertida narrativa que salta entre tempos diferentes e que nos faz contemplar se nossos destinos estão ou não escritos nas estrelas ou se todo encontro é mera coincidência.
O espetáculo conta com uma banda ao centro do palco, tocando rock de estilo anos 1960, e a ação ocorre em volta deles, contando a história do jovem vendedor de sanduiche e as irmãs, uma com sonhos de ser atriz na Broadway e outra mais introspectiva, interessada em astronomia. Ainda cruzam diversos outros personagens na história dos três; histórias paralelas, todas que culminam no histórico apagão de 1965 que ocorreu no noroeste dos EUA, sugerindo uma possível relação cósmica entre tudo e todos e como os pequenos momentos em nossas vidas somam para chegar nos grandes momentos. Este momento é emocionante. Sua narrativa, cenografia e iluminação se unem para apresentar uma reviravolta emocionante e deixar o público maravilhado ao reproduzir um céu estrelado dentro do teatro.
O espetáculo infelizmente não se encontra mais em cartaz, mas se voltar é outro que recomendo.
Here Lies Love
Com música, letras e concepção de David Byrne e Fatboy Slim e apresentado pelo Public Theater, Here Lies Love conta a história da ascenção e queda de Imelda Marcos, ex-primeira dama das Filipinas. Inusitado e intrigante de cara, só pelos nomes citados em parceria, este musical ainda conta com o diferencial de ter uma proposta cênica de apresentação bastante alternativa.
Limitado para somente 160 espectadores por apresentação, o espectador chega no Public Theater e sobe uma série de escadas para o sótão do teatro, onde se encontra dentro de um salão muito bem equipado, com direito ao equipamento de luz e som mais sofisticado e diversificado no mercado, dezenas de projetores, televisores, ventiladores gigantes, maquinas de fumaça e palcos ambulantes, transformando o espaço numa super pista de dança – o espetáculo é montado para reproduzir uma festa e o público tem que estar preparado para passar o tempo inteiro em pé e se mexendo, de preferência dançando à batida do espetáculo; a música nunca para.
Infelizmente a ambientação foi levada muito a sério, ao ponto de interferir com a narrativa do espetáculo. Em diversos momentos o clima de discoteca é tão envolvente que a música (operado por DJ) fica alta demais para o elenco cantar por cima. Ainda mais desafortunado, apesar de todo o equipamento moderno, o microfone da protagonista falhou durante uma canção e ela teria que segurar na gogó, mas não segurou. Rapidamente trocaram seu microfone e tudo voltou ao normal. Só para ver que esses erros técnicos acontecem nas melhores produções!
A proposta de narrar a vida de Imelda Marcos e usar a ambientação cenográfica para mostrar a vida dela como uma grande festa é exemplar, apesar da narrativa ser muito fraca, contando os eventos de forma bastante didática (procurei e não encontrei alguém que tenha assinado o texto/livro do espetáculo). Faltou personalidade no texto que não se mantém ao nível da produção tecnológica. Por exemplo, um detalhe básico da vida de Imelda Marcos que acredito todo mundo no público esperava ver no show seria alguma, qualquer, referência à sua coleção de sapatos, famosa mundialmente (já faz parte até de acervo de museu!). Por extensão deste pensamento, o figurino é um elemento que não tem destaque algum, o que para um espetáculo sobre uma personalidade que também é associada ao mundo da moda, decepciona.
Por outro lado, a proposta cenográfica de apresentação é sensacional e muito bem executada, técnica e artisticamente um sucesso. Funciona. Um pouco vertiginoso o quanto o elenco da voltas no público, se apresentando primariamente nos palcos ambulantes que dividem e encurralam o espectadores, como uma roleta gigante e o público são as bolinhas no jogo. O espetáculo é uma festa espetacular.
Hedwig and the Angry Inch
Imperdível! Ouçam de quem já era apaixonado por esse musical desde o ano 2000. De alguém que assistiu a versão cinematográfica, traduziu, adaptou e produziu o mesmo no Brasil durante 3 anos, já produziu show com o autor e ator original e assistiu 5 outros atores interpretarem a protagonista, incluindo uma versão teatral em alemão. Não percam! Um dos espetáculos mais nomeados e vencedor de diversos Tony Awards este ano, Hedwig and the Angry Inch foi vencedor de diversas outras premiações, nas categorias melhor ator, atriz, cenário, iluminação, som, figurino, produção, espetáculo e revival de um musical. Tive o prazer de assistir com Neal Patrick Harris protagonizando, vencedor de diversos os prêmios de melhor ator pelo personagem. Ele foi substituído recentemente, Andrew Rannels, mas ninguém aguenta protagonizar Hedwig 8 vezes por semana por muito tempo – requer muito do protagonista, que se apresenta basicamente num monólogo, cantando e dançando rock’n’roll em cima de saltos, de peruca e maquiagem por 90 minutos ininterruptos. Agora já estão no terceiro ator, Michael C. Hall, a protagonizar o espetáculo dentro de menos de um ano!
A trajetória de sucesso deste espetáculo mais que alternativo coloca ele na categoria de fenômeno mundial e um sucessor digno do Rocky Horror Picture Show. Um musical montado aos pedaços numa casa de rock de drag queens, que seguiu para uma produção off-Broadway que primeiro custou U$24.000, tomou embalo e ganhou notoriedade underground, fizeram um filme que o estourou para status cult. Daí para frente diversas produções remontaram suas próprias versões ao redor mundo e agora retorna de braços abertos para a cidade em que nasceu, no coração do Times Square e no centro das atenções. Atualmente o autor e o compositor, John Cameron Mitchell e Stepehen Trask, estão desenvolvendo um novo musical que dá continuação à saga de Hedwig. Uns dois anos atrás tive a oportunidade de assistir a primeira leitura dramatizada da primeira parte do novo texto. Falo com convicção que a história do novo musical será tão sensacional quanto o original!
Enfim, voltando ao espetáculo atualmente em cartaz na Broadway. Vivenciar o fenômeno que é assistir Hedwig dentro daquela casa de teatro é uma experiência inesquecível. Assistir o público se empolgar, urrar, ovações em cena aberta (e o ator sendo forçado a pedir para pararem os aplausos!), espectadores gritando e cantando como se estivessem em um show de rock ao ar livre no Rock n Rio – tudo isso dentro de um teatro da Broadway!
O espetáculo, bem, o que dizer? O texto é pessoalmente muito especial e as canções são algumas das minhas prediletas – puro rock’n’roll. Unidos, texto e música são intrínsecos, inteligentes e imaginativos, estranhos porém tão próximos de nós mesmos e repletos de referencias históricas que não esqueceremos tão cedo. Para um romântico idealista, esse texto pode virar uma bíblia.
Recortando do release da produção brasileira:
O espetáculo é um rock-musical, que conta a história da “internacionalmente ignorada estilista musical”, Hedwig Schmidt, uma deusa do rock’n’roll da antiga Berlim Oriental, que incidentalmente também é a vítima de um erro médico durante sua operação de troca de sexo, que a deixou com um “centímetro enfurecido”. Esta ultrajante e inesperadamente hilária história é apresentada por Hedwig – nascido Hansel – no formato de um show de rock/monólogo cômico, apoiado por uma banda, o “Centímetro Enfurecido”. Através de canções e monólogos, Hedwig começa sua história na antiga Berlim Oriental, onde, ainda como Hansel, conhece Luther, um militar americano que promete levá-lo para os Estados Unidos, com a condição que troque de sexo. Após sua operação falhar, Luther a abandona num trailer no meio do Kansas, onde ela começa a trabalhar com música e conhece Tommy Speck, por quem se apaixona. Tommy rouba suas canções e se transforma numa estrela de rock, enquanto Hedwig é novamente descartada. Ela decide batalhar por justiça e começa a perseguir Tommy em sua turnê mundial, se apresentando em restaurantes perto dos estádios onde ele se apresenta. Durante suas apresentações, Hedwig descreve sua busca pela “Origem do Amor” e a sua cara-metade.
O mais impressionante desta produção é que eles não propuseram simplesmente remontar o espetáculo. Eles decidiram remontar de forma a surpreender até seus maiores fãs. O fenômeno é tão grande que existe o termo “hed-heads” para indicar um fã de Hedwig, como “trekkies” é para Star Trek.
Novas piadas foram inseridas, novos contextos. O cenário, figurino luz e som superam qualquer expectativa de um hed-head. Começando pelo visual de entrada da Hedwig, reproduzindo um figurino do David Bowie da época do Ziggy Stardust – claro que ela desce pendurada do urdimento como Bowie. Daí para frente o figurino e as perucas vão ficando cada vez mais escandalosos enquanto o cenário reproduz o momento parado no tempo em que uma bomba estoura, com direito a diversos efeitos especiais, como um carro que é içado para fora do palco. O trabalho de luz e projeção é deslumbrante e tem seu auge de projeção na canção “Origin of Love” e seu auge de iluminação no reprise do “Wicked Little Town”. Destaque precisa ser dado à nova versão de “Sugar Daddy” no estilo Franz Ferdinand, que dá vontade de levantar e dançar.
Hedwig and the Angry Inch é um daqueles espetáculos que precisam ser vistos por todo mundo e será reproduzido centenas de vezes. Se der para ver uma das melhores produções já realizadas, melhor ainda.