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Um olhar sobre a gênesis de “Gritty Glamour”

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Gritty Glamour é um esforço de um conjunto de artistas, baseado em nosso desejo de tratar situações vividas por nós: imigrantes e descendentes de imigrantes, inseridos (as) em uma sociedade predominantemente branca e heteronormativa. A trama se desenvolve da seguinte forma: no backstage de um clube berlinense durante um evento de caridade em prol de uma drag queen que foi atacada por um grupo de homofóbicos, quatro performers discutem temas relacionados à família, sexo, amor, diáspora, aceitação dentro e fora da comunidade queer, enquanto se prepararam para entrar em cena. A linha dramatúrgica adotada se concentra em uma apresentação PERFORMÁTICA dos conflitos diários vividos pelas quatro figuras em detrimento de uma apresentação TEATRAL tradicional de um conflito e sua consequente solução.

 

Encontros

Meu primeiro contato com “Gritty Glamour” se deu através do diretor da Ballhaus Naunynstraße, o ator e teórico teatral brasileiro Wagner Carvalho que havia assumido a direção da Ballhaus na saison de 2013/2014 (em parceria com o diretor cinematográfico, jornalista e dramaturg turco-alemão Tunçay Kulaoğlu e, finalmente, individualmente a partir da saison 2014/2015). Ele me contou sobre o interesse em estender o foco da Ballhaus, um teatro localizado no bairro de Kreuzberg que se estabeleceu desde sua reabertura em 2008 a partir do conceito teatro pós-migratório, produzido por artistas de origem não exclusivamente alemã com trajetórias individuais e familiares de deslocamento para a Alemanha.

 

Devido à forte presença de imigrantes turcos na Alemanha (oriundos principalmente a partir das correntes migratórias dos anos 60 e 70, com o intuito de reerguer o país destruído após a Segunda Guerra Mundial), a grande maioria dos projetos artísticos desenvolvidos na Ballhaus possuíam um forte apelo turco. Desde que assumiu individualmente a direção do teatro, Wagner se esforça por alargar esse panorama, convidando novos protagonistas e, por conseguinte, novos temas e perspectivas.

 

Na tal reunião, Wagner me contou a respeito do seu interesse em incluir a temática queer no repertório da Ballhaus. Sua primeira investida seria a performance “Gritty Glamour”. Por pura coincidência, Simon Paetau, diretor da obra, surgiu no local. Tive aquela sensação de amor à primeira vista: Simon é um rapaz doce, de sorriso largo e bela aparência, de origem colombiano-germânica. Conversamos brevemente sobre minha inclusão no time artístico de “Gritty” assumindo a função de dramaturg da obra.

Na semana seguinte, Simon e eu realizamos um levantamento de procedimentos e temas que nos interessavam: travestimento, movimentação fluida entre gêneros, forte presença de artistas queer na noite berlinense e suas ricas histórias de vida, dentre outros. No fim de Novembro, o autor do texto de “Gritty” abandonou o projeto. Daniel Martins, autor brasileiro que já havia trabalhado com Simon em outros projetos cinematográficos, foi convidado. Convite feito, convite aceito.

 

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Criação textual conjunta

O texto que serve de base para “Gritty Glamour” foi criado através de diversos tipos de colaboração. A primeira delas ocorreu através de uma série de entrevistas conduzidas por Simon e Daniel antes dos ensaios iniciarem com os (as) quatro performers: Black Cracker, músico, rapper e poeta transgênero (transitando do feminino para masculino) de origem estado-unidense, Dieter Rita Scholl, alemão que desenvolveu sua carreira como performer drag interpretando canções das divas da época dourada do cinema hollywoodiano, Aérea Negrot, cantora e DJ transgênero (transitando do masculino para o feminino) de origem venezuelana; e Jair Luna, bailarino colombiano. O objetivo destas entrevistas foi coletar fatos e histórias reais dos (as) quatro performers com o intuito (e a devida pré-autorização) de criar personagens que, de alguma maneira, tivessem relação com os acontecimentos vivenciados pelos próprios performers.

Com este material, Simon, Daniel e eu iniciamos o trabalho de ficcionalização das histórias que durou de Dezembro de 2014 a Janeiro de 2015. Semanalmente, discutíamos os temas que desejávamos apresentar em “Gritty”. Durante esses encontros, Simon e Daniel me apresentavam diferentes versões do texto e eu os auxiliava a selecionar aquela que parecia ideal. Durante este processo, nos preocupamos em misturar as histórias que cada performer havia nos contado, criando assim um material de fato ficcional. Isso significa que o autor original de uma história não necessariamente a contaria no palco. Utilizamos esse mecanismo como forma de proteger a intimidade dos (as) performers e também já prevendo uma possível dificuldade deles em lidar com um material emocionalmente forte a ser digerido e interpretado por não-atores (atrizes).

O texto base resultante desta etapa viria ainda a ser extremamente modificado a partir da generosa colaboração dos (as) performers e da assistente de direção Insa Peters durante o período de ensaio que se estendeu até 06 de Março.

Ensaios

Tínhamos apenas seis semanas para transformar em encenação um texto de 5 atos e quase 70 páginas. Nosso dia de ensaio começava sempre com um aquecimento físico guiado por mim, Simon ou pelo performer Jair Luna. Em seguida, movíamos para o exercício de repetição originário da técnica Meisner. Desde o início do processo de criação, tivemos consciência da dificuldade, para performers que não possuem formação de ator, em lidar com um material ficcional tão próximo de suas vidas.

Depois de algumas horas de prática do exercício de repetição da técnica Meisner, iniciávamos o trabalho de criação das cenas, respeitando mais ou menos a ordem cronológica do texto. Ficávamos ocupados com a marcação das cenas, entendimento de emoções presentes em cada uma delas e relevância de cada cena para a o conjunto dramatúrgico da encenação durante quase todo o resto do dia. No início, também fazíamos uma leitura de mesa de cada ato ao fim de cada ensaio com o objetivo de discutir conteúdos e alterar ou mesmo cortar cenas que considerássemos supérfluas. Essas leituras se mostraram bastante produtivas uma vez que os (as) performers e a assistente de direção Insa participavam ativamente no processo de edição do texto, que era então depois trabalhado no processo final de marcação das cenas, passando outra vez por uma análise crítica.

Após duas semanas, percebi que os (as) performers ainda possuíam pouco entendimento acerca de seus personagens, do tipo que lhes permitiria construir uma espinha dorsal para os seus respectivos personagens, de maneira a desenvolver uma atuação consistente ao longo de toda a obra. Havia uma questão comum a todos: a dificuldade em separar ficção da realidade, ou seja, a dificuldade em separar suas vidas das vidas dos seus personagens. Propus então um workshop de construção de personagens, que concentrou-se no exercício do círculo neutro, que me foi apresentado na UNIRIO por Humberto Brevilheri e pela professora Tatiana Motta Lima. Este e outros exercícios buscaram oferecer possibilidades corporais e ferramentas tanto físicas como vocais para a construção de personagens foram praticados durante o workshop e também algumas vezes mais.

 

O processo de criação de “Gritty Glamour” foi um grande desafio para todos da equipe artística: desde a escrita do texto que serviu de base para a encenação até a dificuldade dos (as) performers em lidar com um material tão próximo da vida real deles. Apesar disto, debater temas e trazer à cena questões tão presentes na realidade cotidiana não só de cada membro da equipe, mas também de um coletivo, foi uma experiência sem dúvida recompensadora.

 

Serviço

“Gritty Glamour” – uma intervenção queer”

Reapresentação entre os dias 18 e 21 de Setembro de 2015 na Ballhaus Naunynstrasse.

Para mais informações visite o website: http://www.ballhausnaunynstrasse.de/auffuehrung/66633648

Ficha técnica

Texto: Daniel Martins, Simon Paetau, Iury Trojaborg, Insa Peters, Aérea Negrot, Black Cracker, Dieter Rita Scholl, Jair Luna
Direção: Simon Jaikiriuma Paetau
Dramaturgia: Iury Trojaborg
Cenário e Figurinos: Michaela Muchina
Elenco: Aérea Negrot, Black Cracker, Dieter Rita Scholl, Jair Luna
Assistência de direção: Insa Peters
Design de luz: Catalina Fernández
Assistente de luz e cenário: Cheng- Ting Chen
Vídeo: Liz Rosenfeld
Maquiagem: Nuria de Lario
Direção técnica: Jens Schneider
Direção de produção: Julia Exenschläger

Categorias: Blog. Tags: Aérea Negrot, Black Cracker, carrossel, Dieter Rita Scholl, Humberto Brevilheri, Insa Peters, Jair Luna, Simon Paetau, Tatiana Motta Lima, Tunçay Kulaoğlu e Wagner Carvalho.