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Um domingo com Kentridge

Juro que só me liguei quando escutei o barulho. Foi um pá! surdo, e o meu carro tinha amassado o do vizinho. Eu não fazia ideia de quem era o dono, mas sempre tinha reparado: era um veículo simples, com o banco do carona e o de trás sempre recostados para apoiar um violoncelo. O porteiro viu o que aconteceu e me ofereceu toda a sua zelosa corrupção: “Não vou contar para ninguém, pode ficar tranquila que daqui não sai.” Imagina se eu ia topar. Com violoncelista não se brinca.

A Marta do 202 me abriu a porta com os lábios em linha, sorriso de quem foi incomodada. Televisão ligada baixinho, ela assistia a um filme no Telecine Cult, acho que Piaf. Me contou que tinha acabado de reformar o apartamento e me deu um biscoito que ela mesma fez, salpicando pimentas que ela mesma plantou. E tascou um “então diga”. A minha frase saiu de uma tacada: Olha, Marta, eu bati no seu carro. Amassou bem do lado do violoncelo. Marta conteve a raiva, talvez por perceber que eu estava morta de vergonha, e não me perguntou por que eu tinha batido (ainda bem, eu jamais diria). Dona Marta era a reencarnação de Buda.

Um dia depois resolvi subir a Marquês de São Vicente a pé para ir ao Instituto Moreira Salles, na Gávea, ver o último dia da exposição de William Kentridge. Mal aportei no Instituto, suando em bicas, e lá estava ela, Marta do 202, na entrada. Tentei me enfiar no banheiro, mas ela me alcançou antes. Deixei logo claro que tinha subido a pé, que tinha largado o carro por um dia, mas Marta não estava preocupada com isso. Desandou a falar de Kentridge: “Veja com atenção. É mágico. Você precisa de Kentridge.” Temi por mim: eu preciso de Kentridge? Seria aquilo uma indireta? Kentridge gostava de direção? Era um expert em manobras de garagem?

Pois, se Kentridge era um ás no volante, eu não sei. Mas a exposição é uma estrada sinuosa, que traz trabalhos de 23 anos da produção do artista. E o que ela mostra, nesses desenhos, gravuras, esculturas, filmes e animações, é um percurso. Ou melhor: uma pergunta.

Um dos painéis me fisgou de imediato. Eram muitos desenhos, vários deles com imagens de objetos cotidianos, e a sequência trazia o sentido de transformação: um desenho termina no outro, um traço é retomado e retrabalhado na gravura seguinte. Como diz a curadora da exposição, Lilian Tone, no texto do site do IMS, “motivos recorrentes do artista (…) são construídos, desconstruídos e remontados diante dos nossos olhos”.

Caminhando de uma sala a outra da exposição, a sensação de remontagem e construção se espalha pelo conjunto da obra. Alguns desenhos, que urravam por sair das duas dimensões, enfim se tornam animação e ganham dinâmica e música. O autorretrato, ou a presença do artista em vários dos seus desenhos, vai ganhando espaço, até que ele realiza uma série de vídeos consigo mesmo.

Esse caminho mostra uma evolução? Não, a palavra não cabe, pois suporia um destino final. Ao contrário: passo a passo Kentridge se torna, aos meus olhos, um artista insatisfeito, tentando entender seu próprio processo criativo, e dando vez às transformações que podem acontecer em seu trabalho. Arrisca o esgotamento de recursos, o cruzamento de plataformas, a mescla de elementos. Em cada desenho, instalação ou animação de Kentridge existe um artista faminto, desejoso e questionador do próprio caminho. E não seria isso a fome de que fala Kafka, o artista quando jovem de Joyce? Parece ser essa a noção de Fortuna, que Kentridge diz ser o princípio guiador de sua arte. Acaso, destino, devir, o constante estado de construção.

“Parece que nunca termina”, me sussurrou minha amiga Gabi Carrera, que via a exposição comigo, no final do último corredor. O processo não termina, mas a exposição sim. Bastou o relógio badalar as 20h que o guarda veio chamar.

Saímos do IMS exaustas. Descemos a Marquês a pé.

Não vi mais a Marta do 202 naquele dia. Aliás, nem sei que raios ela tem a ver com esse texto. Quando sentei para escrever, a Marta apareceu no primeiro parágrafo, e eu deixei ficar. Não sabia no que ia dar. Tal como Kentrigde, a gente nunca sabe.

Categorias: Blog. Tags: carrossel, Lilian Tone e William Kentridge.