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Teatro do Saara e Casa de Baco: arte que emerge na crise

Saara BacoSe qualquer investimento em cultura já seria, em si mesmo, digno de nota, empreender nessa área em tempos de crise parece ter se tornado sinônimo de loucura — ou de paixão pela arte. De março para cá, dois exemplos de iniciativas nesse sentido têm agitado a vida cultural da região do Centro do Rio de Janeiro: o Teatro do Saara e a Casa de Baco.

O primeiro reúne encenações cinco espetáculos curtos, com textos de Luciana Zule e direção de Fernando Maatz [na foto acima, à esquerda], idealizador do projeto, em um prédio no Largo São Francisco de Paula, na região conhecida como Saara (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega). As peças alternam-se em três apresentações por dia, entre 12h30 e 15h, somente até junho, mas o objetivo é, futuramente, conseguir criar ali um espaço cultural com programação contínua. Não muito longe dali, na Rua da Lapa, esse sonho tornou-se uma realidade na Casa de Baco, realização dos produtores Alice Steinbruck e Sandro Rabello [na foto da direita, acima], inaugurada em abril. Com um teatro capaz de receber até 200 pessoas, o espaço abriga espetáculos adultos e infantis, apresentações de dança, shows e oficinas.

A convite do TEMPO_CONTÍNUO, Maatz, do Teatro do Saara, entrevistou Alice, da Casa de Baco, e vice-versa. Nas perguntas e respostas de ambos, os desafios de investir em cultura em um momento especialmente complicado na cidade.

* Fernando Maatz (Teatro do Saara) entrevista Alice Steinbuck (Casa de Baco):

F.: Vocês lembram como foi a primeira conversa que fez vocês decidirem que fariam a Casa de Baco? Pergunto isso porque sempre lembro que Stanislavski e Dantchênco definiram, segundo dizem os livros, a diretriz do Teatro de Arte de Moscou após 16 horas de vodca. Qual era a motivação para criar esse novo espaço?

A.: Somos colegas da faculdade e, depois de formados e estabelecidos, nos reencontramos para realizar um projeto que era bastante ousado e para o qual tínhamos um orçamento mínimo. Seis meses depois do projeto terminado, nos reunimos no escritório da [produtora] Diga Sim, que na época estava situado na Cinelândia, para o fechamento de contas deste espetáculo. O saldo eram prejuízos financeiros, porém havia a enorme satisfação de termos realizado tudo que nos propusemos a fazer e desenvolvido uma parceria muito dinâmica e potente. Falamos sobre o futuro do espetáculo e conversamos sobre o fechamento de espaços na cidade, falta de pauta, falta de lugar de ensaio, falta de lugar de convivência… Fomos pra Lapa tomar uma cerveja e aliviar o peito das dificuldades de trabalhar com cultura num país de terceiro mundo. Passando pelas ruas, olhávamos a profusão de prédios históricos vazios com placas de ALUGA-SE, fruto da crise econômica, e confessamos um ao outro que sonhávamos em ter um espaço nosso. Começamos a pegar os telefones das casas nas ruas, tirar fotos de prédios, para ter uma ideia do valor de aluguel, mas era tudo muito caro. Desistimos e cada um foi pra sua casa. No dia seguinte, eu tive de ir ao Centro outra vez e, na volta pra casa, passei pela Rua da Lapa. Havia um lindo casarão ao lado de um estacionamento com uma bela calçada larga na frente, em frente a uma rua viva e movimentada, com uma placa de ALUGA-SE. Liguei e, na mesma hora, consegui entrar para ver o galpão abandonado no formato exato de um pequeno teatro com um pé-direito bem alto. O proprietário queria alguém pra arrumar o lugar e tornou possível o valor do aluguel, e nós fomos os sortudos que ganhamos esta missão de presente.

F.: O Teatro do Saara sempre foi um empreendimento com um programa “oficial” de peças. Desde que abrimos, ficamos impressionados com o volume dos pedidos de pautas. Aparenta faltar teatros de pequeno de porte na cidade do Rio de Janeiro. Como a Casa de Baco lida com a alta demanda de pautas?

A.: Lidamos com a profusão cultural carioca da seguinte maneira: vamos nos desdobrar pra criar vários horários e oferecer propostas de todos os tipos. Queremos ser um espaço de criação, em que o artista tenha um local de trabalho confortável, digno e democrático. Recebemos as propostas pelo e-mail casadebaco@digasimproducoes.com.br e fazemos uma seleção de acordo com as prioridades do empreendimento, ou seja, queremos receber artistas sérios e engajados, pessoas que querem fazer seu melhor e não têm local pra mostrar. Mas esses artistas não têm necessariamente de ser nomes famosos ou da mídia, estamos interessados na beleza artística que o Rio tem a oferecer, feita pelos cariocas e por pessoas de todas as partes, que vivem aqui, e desenvolver um mercado sustentável ao redor disso.

F.: O Teatro do Saara aposta na programação a varejo para movimentar a região e se manter financeiramente. O dinheiro é sempre um problema. Quais as apostas da Casa de Baco para gerar receita? Qual o desafio financeiro de vocês nesse momento?

A.: O nosso desafio financeiro no momento é o mesmo de toda a cultura brasileira: reconquistar o dinheiro do público e a relação de qualidade e valor.  O público deveria ter prazer em pagar e em consumir um artigo de luxo que é a arte. Mas o estado roubou isso dele, fornecendo recursos somente para alguns espaços e algumas propostas, colocando a curadoria cultural de um país na mão da direção de marketing de empresas que dão patrocínio e ditando uma política cultural que emburrece, empobrece e envelhece, torna estéril. O brasileiro é um povo muito inteligente e capaz, e na hora que entender que ser elegante, ser chique e ter status não tem nada a ver com suas roupas e sim com ter muita educação e cultura, esse problema financeiro da cultura estará solucionado com lucro para todas as partes. Para transformar essas as dificuldades em oportunidade, criamos uma programação de qualidade de teatro e música, com dois eventos de contribuição facultativa durante dias de semana para as pessoas conhecerem o lugar. São a Gafieira Pé de Louro, na terça, e o Jazz da Casa, na quarta. Temos um bar delicioso, yn café que funciona como sala de reunião para quem quiser criar de tarde, um lugar pensado pra receber todas as famílias artísticas do Rio. Além disso, criamos uma página no Facebook, um site e um aplicativo no qual será possível adquirir seu ingresso online e também os produtos gerados pelos artistas que passam por lá.

F.:  Além de simplificar a regulamentação de empreendimentos como os nossos, de cunho cultural e de pequeno porte, o que falta para que mais espaços independentes de cultura se multipliquem no Rio de Janeiro?

A.: Uma coisa de suma importância é que o Estado monte um grande plano de apoio ao empreendedor cultural imediatamente, disponibilize espaços abandonados para editais mais simplificados e ofereçam a mão de obra para realizar, além de consultorias com profissionais qualificados em gestão como uma contrapartida estatal. Isso evita tanto roubo e desperdício, dificulta a criação de esquemas corruptos, aquece o mercado e gera público, pois os trabalhadores também amam o teatro, mas ainda não sabem disso. Também é muito importante criar uma regulação para abaixar os valores de impostos para importação equipamentos para teatros e de som, pois isso já inviabiliza muito a nossa qualidade de entretenimento, e gerar benefícios para redução de preços em geral para empreendedores culturais, como uma forma de auxílio rápido para a cidade, para o estado e até para o país. Os preços hoje são superfaturados, pois o governo fornece recursos através de editais e ele mesmo compra equipamentos e usa os recursos fiscais em seus próprios projetos, inflacionando o mercado. O empreendedor cultural de pequeno e médio não pode competir com o governo, isso é um suicídio financeiro para a cultura.

F.:  Imaginando um mundo ideal. Em dez anos como vislumbram a Casa de Baco?

A.: Queremos vê-la forte e tendo gerado muitas lindas obras artísticas, e talvez dando seus filhotes em outras casas por aí. O teatro já é um mundo ideal, um lugar onde se recria uma estrutura social todo momento e esta estrutura pode ser justa, lucrativa e muito gostosa. Por exemplo, quando chegamos ao casarão abandonado, na parte debaixo havia muitos moradores de rua. Começamos a reforma e eu resolvi empregar alguns deles pra nos ajudar. Hoje, eles se mudaram, voluntariamente, da frente da casa, que protegem, guardam, e todos os dias passam na frente, orgulhosos do trabalho que eles sabem que ajudaram a fazer. Só isso já pode mudar muita coisa.

Alice Steinbuck (Casa de Baco) entrevista Fernando Maatz (Teatro do Saara):

A.: Como vocês enxergam seu o papel social do teatro na área da cidade onde está o Teatro do Saara? Que tipo de público tem se interessado e qual o feedback que estão recebendo do bairro e da comunidade ao redor?

F.: O Teatro do Saara sempre foi pensado para ocorrer na região conhecida como Saara. Nesse sentido, nosso papel social, tem um foco único: levar gente que  já frequenta a região ao nosso “teatro varejista”. O público tem sido variado, como os frequentadores da região. E isso nos deixa muito satisfeitos. Queremos que mais pessoas do entorno frequentem o Teatro do Saara e saibam da facilidade do “teatro a varejo” que oferecemos. Nosso foco é o entorno do Saara e as pessoas que já frequentam a região.

A.: Vocês estão localizados numa área comercial bastante coesa, que tem até uma Rádio Saara, famosa pela integração de povos e união, até hoje. Os comerciantes da área os apoiaram em algo?

F.: Com a Rádio Saara já possuímos uma bela parceria. Na Páscoa, teve sorteio ao vivo com o fundador da rádio, Luiz Antônio Bap, nos dando uma aula magna de comunicação popular. De modo geral, comerciantes gostam da iniciativa na medida em que vislumbram que o teatro pode, a longo prazo, ajudar na movimentação de clientes e frequentadores. Mas o varejo funciona no dia a dia e promessas de retorno cultural são limitadas nesse início de projeto. Nosso ideal é permanecer na região. O varejo teatral é uma nova realidade para todos os artistas envolvidos. Não temos dúvidas de que, mantendo a programação varejista do Teatro do Saara por um ou dois anos, nos tornaremos uma “loja” importante da região.

A.: Como tem sido a curadoria do espaço?

F.: O Teatro do Saara foi um espaço pensado para abrigar um programa teatral de “teatro a varejo”. Esse programa é composto por cinco peças curtas no horário de 12h30, 13h30 e 14h30, de segunda a sexta. A partir de maio, faremos o Teatro do Saarinha, para o público infantil, e Punk Modo On, para roqueiros da cidade. As duas peças são parte do repertório dos grupos que gerem o Teatro do Saara. Ainda não temos uma política de pauta, por assim dizer. Estreamos há cerca de um mês; e a limitação do espaço (lona e camarim contêiner, por exemplo) dificulta a logística para produções de terceiros. Mas claro que queremos ocupar o espaço em todos horários possíveis. Nossa ambição é termos programação de segunda a segunda.

A.: De uma forma geral, o Centro do Rio precisa de um enorme esforço financeiro de adaptação dos imóveis para atender às exigências de segurança para receber público. De que maneira vocês resolveram os eventuais problemas no espaço de vocês?

F.: Não reformamos o imóvel. O que fizemos foi adaptar uma ruína para um teatro de pequeno porte. É um teatrinho erguido com tecidos, palco, plateia e cortina vermelha. Nosso camarim é um contêiner. Nossa plateia é feita de pallets e almofadas. Ao não reformar, mas adaptar, facilitamos nosso trâmite. Em vez de telhado, colocamos lona para não modificar a estrutura do patrimônio, por exemplo. Nesse sentido, a consultoria das arquitetas parceiras foi fundamental. Nossa ambição é obter financiamento pra reforma e montar um espaço teatral permanente, com escritórios, sala de ensaio, oficina e teatro de pequeno porte. E teto, claro.

A.: O que, na experiência de vocês, pode melhorar no Rio de Janeiro para que lugares como os nossos aumentem em número e se espalhem por toda a cidade?

F.: O ideal seria uma legislação que previsse as especificidades de espaços independentes de cultura. Sobretudo no que diz respeito a locais de pequeno porte. Via de regra, as exigências põem todos os eventos culturais em um pacote de até 1000 frequentadores.  Não dá pra comparar com um evento como o Teatro do Saara, que tem limitação de 45 espectadores por sessão.

A.: Que conselho você daria para um jovem empreendedor cultural que tenha um objetivo como o nosso de investir e criar espaços novos e privados?

F.: Não sei se é caso de conselho. Mas acho que vale fazer todos os cursinhos de empreendedorismo, gestão, produção etc. Podem ser chatos, mas tendem a ser úteis. No nosso caso, criar um espaço foi uma maneira de ter mais autonomia e apostar no longo prazo. O programa de estreia do Teatro do Saara está nos dando um “estudo de caso”. Queremos nos estabelecer no local e temos clareza que a programação varejista do Teatro do Saara é nosso principal diferencial. Todo dia, todo dia. E em todos horários. Nossa pretensão é ser um espaço capaz de abrigar diversas iniciativas. Funcionar de segunda a segunda em diversos horários é uma meta possível. Depende “só” de dinheiro.

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Teatro do Saara | Largo São Francisco de Paula, 19 |Telefone: (21) 3349-8008

Casa de Baco | Rua da Lapa, 243 | Telefone: (21) 3796-6191

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