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Sobre descolonizações

Por Daniele Avila Small |

“Há Mais Futuro que Passado”, minha primeira direção no teatro, é um trabalho que converge criação artística, pesquisa teórica e crítica. A peça está sendo criada por um grupo formado só por mulheres e cada uma tem desejos artísticos que se complementam nesse projeto. No elenco, estão Clarisse Zarvos, Cris Larin e Tainah Longras, além da Carolina Virgüez, que faz uma participação em vídeo. Aqui, nesse texto, apresento o meu ponto de vista apenas.

Depois de alguns anos atuando como crítica de teatro no Rio de Janeiro e acompanhando festivais internacionais, trabalhando com o meu grupo, o Complexo Duplo, ao lado do Felipe Vidal, e estudando teoria do teatro na graduação e na pós da UNIRIO, essa peça vem misturar ainda mais o que já estava misturado. Penso que a teoria é uma prática e a criação artística é fruto do pensamento.

O teatro documentário contemporâneo (especialmente no contexto ibero-americano) é o tema da minha pesquisa de doutorado e eu me interesso muito pelo formato de peça-palestra. Também me interessam as peças que colocam em jogo questões relacionadas ao conhecimento e ao pensamento crítico, mesmo que não se identifiquem diretamente com o documentário. Tenho pensado no conceito de “historiografia de artista” pra identificar e refletir sobre os modos de compartilhamento do saber histórico no teatro na atualidade. “Há Mais Futuro que Passado” é parte desse processo de pesquisa.

Entre os espetáculos que compõem o corpus da pesquisa e que contribuíram para a elaboração da ideia de historiografia de artista estão “Mi Vida Después”, da Lola Arias (Argentina), “El Rumor del Incendio”, do grupo Lagartijas Tiradas al Sol (México), “Galvarino”, do Teatro Kimen (Chile), “Instruções para Abraçar o Ar”, do Grupo Malayerba (Equador), “Um museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas”, da Joana Craveiro, do grupo Teatro do Vestido (Portugal), “Os Serrenhos do Caldeirão – Exercícios em Antropologia Ficcional”, da Vera Mantero (Portugal), “Jacy”, do Grupo Carmim (Brasil), e a criação mais recente do Complexo Duplo, “Cabeça (um Documentário Cênico)”, em que participei como interlocutora na criação dramatúrgica. Essas peças – entre outras – me levaram a criar “Há Mais Futuro que Passado”.

Vejo nessas obras uma ética de artista que quer assumir a responsabilidade sobre os discursos que nos formam – os discursos historiográficos, antropológicos, ficcionais, teóricos, jornalísticos… São trabalhos em que atitude crítica e elaboração poética estão intimamente entrelaçadas.

A peça também é uma autocrítica à cultura artística em que estamos inseridas, uma cultura patriarcal, branca, rica e eurocêntrica. De modo geral, percebo que a esmagadora maioria das nossas referências é composta por homens brancos europeus. E alguns dos Estados Unidos. É um massacre. Nesse sentido, a realização desse espetáculo é um projeto de descolonização dos saberes.

Por isso, o nosso ponto de partida foi pesquisar artistas mulheres latino-americanas. A peça que estamos criando é uma tentativa de falar sobre elas, que vieram antes de nós. A opção por trabalhar só com mulheres já é um reflexo da própria pesquisa, uma ética que se estabelece. A partir do momento em que nos incomoda o protagonismo dos nomes masculinos e o eurocentrismo na arte, o enfrentamento desses problemas passa a ser de responsabilidade nossa também. Se queremos retirar a camada de invisibilidade que foi colocada sobre as mulheres ao longo de milênios, precisamos criar uma nova cultura. Se queremos estar no mundo como latino-americanos, que somos, precisamos nos incluir na nossa própria tradição. Porque uma cultura não é uma coisa natural. As tradições são forjadas por projetos de poder. Para ir contra, é preciso inventar situações, criar novas culturas.

Na dramaturgia de “Há Mais Futuro que Passado”, feita por mim, pela Clarisse Zarvos e pela Mariana Barcelos, criamos uma situação que nos permite pensar sobre arte e formação cultural, sobre o lugar da mulher latino-americana na história da arte e, consequentemente, sobre o nosso lugar como artistas e pesquisadoras de teatro no Rio de Janeiro do século XXI.

A peça estreia em março no Sesc Copacabana. A equipe é formada só por mulheres: A produção é da Fernanda Avellar, cenografia da Elsa Romero, Iluminação da Ana Kutner, figurino da Raquel Theo, trilha sonora da Julia Bernat e da Laura Becker e direção de movimento da Denise Stutz.

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Daniele Avila Small é Doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO. Autora do livro “O Crítico Ignorante – Uma Negociação Teórica Meio Complicada” (Editora 7Letras, 2015) e da peça “Garras Curvas e um Canto Sedutor” (Cobogó, 2015), foi diretora artística do Teatro Gláucio Gill em 2011 e 2012 com Felipe Vidal na Ocupação Complexo Duplo. É idealizadora e editora da revista Questão de Crítica, integra o coletivo carioca Complexo Duplo e a DocumentaCena – Plataforma de Crítica. É presidente da seção brasileira da Associação Internacional de Críticos de Teatro (IACT-AICT), afiliada à UNESCO, e editora regional no Brasil do site The Theatre Times.

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