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SHAKESPEARE NA VOZ DE MULHER

Passei o final de semana em Curitiba acompanhando um pouco do Festival de Teatro, onde tive o prazer de assistir O Rapto de Lucrécia da Royal Shakespeare Company, interpretado por uma de minhas artistas prediletas: Camille O’Sullivan. Mais conhecida como cantora, dona de uma voz deliciosa de se ouvir, daquelas que parecem ter areia, e de um estilo de cabaré catártico – performático e emocionante – Camille O’Sullivan nos surpreende com a erudição da sua interpretação que domina o palco, completamente sozinha, acompanhada somente de seu colega Feargal Murray num piano de calda inteira, com a mais envolvente e hipnótica das composições, emoldurando a voz da atriz, pontuando os movimentos e colorindo o talento poético de Shakespeare e a rima real (estrofes com esquema de rima a-b-a-b-b-c-c na métrica pentâmetro iâmbico) com música.

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O cenário, um chão de tábuas corridas com as pontas incompletas ao pé do proscênio, o piano num canto, pilhas de folhas de papel e manuscritos distribuídos pelo chão (nos lembrando que este texto foi feito originalmente para ser lido) e seis quadros pendurados, delimitando o espaço do palco. Dos quadros, cinco deles têm imagem abstrata, como ferrugem composta por um jogo forte de azul e dourado (como se as imagens tivessem estragado), todos transluzentes para que, em certos momentos, a iluminação possa atravessá-los. O último quadro, somente a moldura vazada, enquadrando o escuro do fundo do palco, com uma pequena escadinha de papel à seu pé e um casaco branco (de Lucrécia) jogado por cima da escada. Além disso encontramos um coturno preto, como de um soldado, e uma sapatilha branca de mulher, um para cada lado da atriz, que se encontra descalça no centro, pronta para “calçar” ambos os personagens protagonistas do poema: Tarquínio e Lucrécia, o agressor e a vítima, respectivamente.

O poema foi escrito em 1594, ano em que os teatros estavam fechados devido à peste bubônica, e é um de dois poemas narrativos escritos por Shakespeare nesta época (o outro foi Vênus e Adônis em 1593, que contém um tom mais humorístico), ambos de temática erótica, contendo algumas das cenas mais gráficas da sua obra.

O Rapto de Lucrécia se baseia na história relatada no livro de Lívio sobre a história de Roma e no Fastos de Ovídio. Em 509 A.C., Tarquínio, filho do rei de Roma, estupra Lucrécia à ponta de faca, que é esposa de Colatínio, um aristocrata da corte do rei. Em seguida Lucrécia se mata e seu corpo, usado como símbolo político, é desfilado no Fórum Romano pelo sobrinho do Rei, Lucius Brutus, que lidera uma rebelião, depondo a família real e fundando a República Romana.

Voltando ao quadro vazado no fundo do palco, parece que foi feito para emoldurar a imagem pura e virgem de Lucrécia que tomou vida e saiu do quadro, desceu as escadas de papel para ser estuprada e morrer no palco à nossa frente. No poema ela é descrita como uma obra de arte, dedicando diversas estrofes à sua beleza, e numa das canções destacando os versos:

Her azure veins, her alabaster skin,
Her coral lips, her snow-white dimpled chin.
O quadro vazado pode ser visto como o pedestal onde Colatínio a colocou, fazendo paralelo à crítica onipresente no poema de Shakespeare sobre a objetificação da mulher. Os outros cinco quadros, profetizando o destino cruel que está por vir.

Contrastando a moldura que enquadra o negro do fundo do palco, encontramos, chegando ao clímax do poema (o rapto), um quadrado de luz branca no chão do palco, sem moldura (a cama de Lucrécia); é dali que Lucrécia, interpretada por Camille O’Sullivan, primeiro surge de verdade no palco, e dá vez à voz de Lucrécia. Até então, a atriz, interpretando primeiro Colatínio e depois Tarquínio, reverenciavam a imagem e o corpo desta mais casta das mulheres.

Conforme o poema de Shakespeare, esta mulher-objeto, propriedade de Colatínio, tem sua pureza tomada à força, por causa do orgulho do próprio Colatínio, que declarou e reverenciou publicamente a beleza e castidade de sua esposa, acendendo o desejo de possuí-la em Tarquínio. Quando Tarquínio se encontra ao pé da cama de Lucrécia, observando sua beleza, é a beleza dela que qualifica e dá razão para o desejo descontrolado de Tarquínio e o seu olhar que comanda o estupro:

His rage of lust by gazing qualified.

His eye, which late this mutiny restrains,
Unto a greater uproar tempts his veins:

His drumming heart cheers up his burning eye,
His eye commends the leading to his hand;

Aqui, bem lembrado por um amigo que também assistiu ao espetáculo, aponta também a pertinência deste texto antigo e estrangeiro para com assuntos e eventos recentes no Brasil, como a pesquisa realizada pelo IPEA sobre estupro, onde, mesmo após retratar erro de cálculo, declara que 26% (em vez 65%) dos homens brasileiros acreditam que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. O índice, que não deixa de ser alto mesmo após a retração (quase 30%!), indica o machismo elevado no país. O resultado da pesquisa causou uma reação de protesto pelas redes sociais entras as mulheres brasileiras, que pode ser parte de um processo longo de mudança na sociedade, através de educação e cultura. Aqui novamente a arte espelhando a vida e apontando que existe a possibilidade de mudança, o rapto de Lucrécia é a causa da queda da monarquia romana e a instauração da república. Isso sem deixar de destacar a voz e o poder da mulher, pois foi Lucrécia quem pediu a promessa de vingança, ela assumiu a vergonha pública denunciando o estupro, e se matou, se transformando em símbolo político de mudança; voz maior não há.

O estupro, que é descrito por Tarquínio com metáforas de uma batalha, uma invasão, depois também é lembrado e recontado por Lucrécia, comparado com a Guerra de Tróia, se descrevendo como Helena que é raptada por Páris (Tarquínio), filho do rei de Tróia (Roma). Enfim é a arte imitando a vida e a civilização que não sabe sua história, destinada a repetí-la. Assim cai Tróia, Roma, …

Nas mãos de Camille O’Sullivan, este poema se torna um rito de sacrifício virginal para apaziguar os mais poderosos dos deuses e maravilhar o mais humilde dos espectadores. A atriz dá voz para um texto que até então se expressava em silêncio. Num ponto de vista feminista, é a mulher ganhando propriedade da sua voz, o sacrifício para acabar com sacrifícios.

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