TRADUZIR

Seguimos

WhatsApp Image 2017-03-28 at 16.25.17Por Guilherme Weber e Marcio Abreu |

“Só me interessa o que não é meu”, aforismo que compõe o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade é o principal pensamento inspirador para nosso segundo ano de curadoria no Festival de Teatro de Curitiba, aprofundando um projeto de programação que atravessa linguagens, busca diálogos transversais, fricciona questões fundamentais do nosso tempo e toma a cidade como palco de invenção, manifestação de diferenças, pensamento e memória.

Na preciosa leitura de Beatriz Azevedo, este fragmento de Oswald se apresenta contrário ao olhar comum de que “o seu, digerido, será meu”, e sim como a múltipla proposta de “o meu, seu, devorado, será Outro”.

Trabalhamos então, favorecendo cruzamentos, passagens, dípticos, trocas e contaminações para que o outro possa ser também a vertiginosa antropofagia de nosso próprio desconhecimento.

Nesta edição, nos lançamos numa grande leitura do Brasil através deste olhar que já guiou a produção artística de modernistas e tropicalistas, entre outros. A busca do Outro como construção de uma pluralidade contra toda e qualquer ortodoxia.

MULHERES E IDENTIDADES

O Brasil que se mostra em Curitiba nesta edição se reflete e se transfigura no repertório de algumas das maiores atrizes e criadoras brasileiras, também uma espécie de edição do Matriarcado defendido por Oswald, ousado e feminino.

Abrir a edição com Fernanda Montenegro lendo Nelson Rodrigues é uma tradução do também encontrar o outro em si mesmo. A atriz abre esta edição em minimalista exercício memorialístico, em que a sua voz sobre os aforismos de Nelson, enche os paradoxos cariocas, brasileiros, de uma compreensão maternal, doce e severa e nos devolve muito de um Brasil perdido. Fernanda Torres volta à cidade depois de uma década com o discurso erótico libertário feminino da baiana criada por João Ubaldo Ribeiro e que liberta a todos da condição machista que séculos de sociedade patriarcal impôs ao Brasil. “A Casa dos Budas Ditosos” e Nelson formam um díptico sobre a lapidação dos extremos de nós, brasileiros.

Juliana Galdino encarna a centenária e estupefata alma nacional em olhar pós-dramático sobre “Leite Derramado”, romance de Chico Buarque em que o encenador Roberto Alvim encontra a melhor expressão de uma estética lapidada por anos em seu Club Noir.

Andrea Beltrão e Debora Lamm recriam trajetórias de heroínas clássicas a partir de realidades nacionais em suas criações de Antígona e Medeia. Escutar esta Antígona de Andrea e Amir Haddad é reconhecer com dor o discurso dos tiranos que assolam nosso país. Debora em “Mata Teu Pai”, com texto de Grace Passô e direção de Inez Viana, dá voz a uma geração de mulheres que a idade e a condição social calou, em profundo exercício de alteridade.

Denise Stoklos revisita seu “500 anos — Um Fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo” 25 anos após a sua criação, com novos e minimalistas recursos de seu Teatro Essencial, em trabalho de revisão intitulado “As Palavras Gestuais de Denise Stoklos” em sua parte dois nesta edição. Stoklos retorna ao engajamento desmonumentalizador de seu “Fax para Colombo” especialmente para o Festival de Curitiba. Na estreia da peça, na Alemanha, em 1997, a artista propôs “eliminar o vírus de Colombo do sistema orgânico em que vivemos” ao escrever sua obra do ponto de vista do conquistado. Assim, ecoa o pensamento oswaldiano no Manifesto do “desvespucianizar, descolombizar, descabralizar, descatequisar, dessublimar, desontologizar”.

Lia Rodrigues, uma das mais importantes criadoras e coreógrafas do país faz sua estreia em Curitiba com o arrebatador “Para que o Céu Não Caia” tendo o livro “A Queda do Céu” — relato do Xamã Yanomami Davi Kopenawa ao etnólogo Bruce Albert — como uma de suas fontes de inspiração. Este espetáculo teve parte do seu processo de criação no Centro de Artes da Maré, na Favela da Maré, para onde Lia mudou sua Companhia em 2004, criando assim um dos mais importantes centros de formação, criação e difusão de artes do Brasil. “O que cada um de nós pode fazer para, a seu modo, segurar o céu?”

Cristiane Jatahy, primeira brasileira a dirigir uma criação na Comédie-Française, investiga continuamente novas inter-relações entre palco e plateia e a construção de uma linguagem a partir do diálogo entre cinema e teatro. A diretora e sua Companhia trazem a Curitiba uma visão personalíssima de “As Três Irmãs”  batizada de “E se Elas Fossem para Moscou?” onde realiza a metáfora proposta por Tchekhov.

Vera Mantero, coreógrafa e performer portuguesa, volta ao Brasil com duas obras de seu repertório: “Olympia” e “O que Podemos Dizer do Pierre”, na primeira encarna a figura homônima da célebre pintura de Manet para, nas palavras da artista, acordar as pessoas, através da leitura singular de “Asfixiante Cultura”, do teórico francês da arte bruta Jean Dubuffet. Na segunda, assim como em outras criações, põe em interação “filosofia e intuição, verbal e não-verbal, racional e irracional”, visitando pensamento de Gilles Deleuze sobre o filósofo Espinoza.

A diretora e dramaturga Fernanda Julia, Mãe-pequena e Dofona de Omolú do terreiro Ilê Axé OyáL’Adê Inan, apresenta sua gira em prol da cultura afro-brasileira e sua pluralidade em “Macumba: Uma Gira sobre o Poder”. A criação é uma parceria do Núcleo de Teatro de Alagoinhas e da Companhia Transitória de Curitiba que pergunta como ser ao mesmo tempo nativo e estrangeiro dentro se sua própria trajetória. Os grupos militam aqui pelo fortalecimento do reconhecimento da arte negra, ecoando a recente entrevista do ator Antônio Pitanga em que disse: “Essa sociedade branca que não reconhece a gente, bebe, come e dança a nossa cultura.”

Em interconexão com estes discursos, o show do novo disco de Mart’nália, “+Misturado”, traz a cena de alta voltagem teatral da cantora e compositora cuja presença toca diversas marcas sociais como raça, classe, performance, gênero e identidade. Sua presença levanta questões sobre o feminismo negro, a luta das mulheres negras para conquistar visibilidade na cena pública e a força da cultura popular como afirmação da nossa identidade.

Gaby Amarantos, faz a estreia nacional de “Eu Sou”, espetáculo musical com referências sonoras que formaram a intérprete. Ela apresenta um espetáculo delicado e memorialístico de imersão em suas raízes africanas e indígenas.

Débora Dubois, assina a direção da versão para o teatro, do clássico de Dias Gomes “Roque Santeiro”. Com trilha sonora de Zeca Baleiro, este musical é uma sátira à política e à exploração da fé. Um olhar agudo sobre um certo Brasil.

Fundador do Coletivo Negro, o diretor, dramaturgo e ator Jé Oliveira apresenta um discurso em primeira pessoa unindo as linguagens do teatro e do rap, performance poética radical construída a partir de entrevistas realizadas na periferia em delicado exercício de alteridade. A experiência de ser homem negro na periferia paulistana é a base narrativa de “Farinha com Açúcar” que mostra como é ser o principal alvo da violência policial brasileira. Em consonância com a criação de Denise Stoklos em seu “Fax para Colombo” aqui a cena também é construída a partir do oprimido.  Uma peça-show para ser sentida, vista, ouvida.

ALTERIDADES

Além da portuguesa Vera Mantero, temos, também de Portugal, o grupo Mala Voadora, com “Moçambique”, uma criação de tema pós-colonial na qual o autor e diretor Jorge Andrade constrói uma narrativa para o que poderia ter sido a sua vida e não foi. Uma espécie de autobiografia ficcional que confronta o mundo implacável das ideologias e o cotidiano das relações sociais.

Completando a tríade de convidados internacionais, integra a programação a obra do dramaturgo iraniano Nassim Soleimampour, que se articula a partir da experiência de censura, impedimento, opressão e violência contra artistas em seus países. “Blank” é uma peça com um ator diferente a cada apresentação, num dispositivo que coloca texto, ator e público em momento inédito a cada apresentação. Será apresentada pela primeira vez no Brasil pelas atores Camila Pitanga, Debora Bloch, Julia Lemmertz, Eduardo Moscovis, Caio Blat e Gregorio Duvivier, especialmente para o Festival de Teatro de Curitiba.

Ecoando algumas releituras de clássicos presentes nessa mostra, como Fernanda Montenegro com Nelson Rodrigues, Christiane Jatahy com Tchekhov, Amir Haddad com Shakeaspeare, temos na peça de Steven Berkoff, “Vilões de Shakespeare”, com o ator Marcelo Serrado, a travessia pelas dimensões da política, do poder e das paixões e de como os subterrâneos dos clássicos do Bardo podem ecoar nos caminhos políticos brasileiros de hoje.

COLETIVOS

Junto a estes artistas, algumas das mais importantes companhias do país representam os vetores de pensamento da curadoria deste ano. O Grupo Galpão, com mais de trinta anos de atividades ininterruptas lança a pergunta “o que podemos fazer juntos?” para criar “Nós”, um espetáculo político onde a convivência em grupo se mostra como metáfora nacional. É o outro como instrumento de transformação, contestação e criação de identidade compartilhada.

A Companhia do Latão, o mais sólido projeto de teatro de reflexão política do país apresenta “O Pão e a Pedra”, que tem como foco irradiador da narrativa a histórica greve dos metalúrgicos de 1979 no ABC paulista, fato que se tornaria emblemático na luta pela democratização e mudaria as coordenadas da política de esquerda no país. O diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho projeta na cena o teatro dialético e o projeto ideológico de Bertold Brecht, fazendo de “O Pão e a Pedra” exercício crítico às relações de dominação, poder e controle do homem.

A Cia Hiato, que tem como um dos mais importantes vetores de trabalho a construção de uma dramaturgia baseada em depoimentos autorais que questionam procedimentos de representação e autoria radicaliza sua pesquisa em “Amadores”, em que o “pensar o outro” é o principal foco. Em cena, indivíduos portadores de discursos que os revelam socialmente, seja pela marginalização, por questões raciais, de gênero, de sexualidade ou de diversos contextos culturais fazem da experiência de suas exposições um dos mais interessantes momentos do teatro brasileiro da década.

O dramaturgo Vinícius Calderoni vem construindo uma obra de forte impacto na dramaturgia brasileira contemporânea. Sua Companhia Empório de Teatro Sortido apresenta “Os Arqueólogos” uma espécie de narrativa de julgamento sobre os mecanismos do tempo onde o exercício do afeto sobre situações cotidianas revela o quanto o outro é fascinante também na identificação dos nossos próprios repertórios.

No impacto das comemorações de seus vinte anos de atividades a Cia 11 apresenta uma reflexão sobre a questão do tempo e o envelhecimento do grupo. Ao colocar a questão “ver quem você é para aquele que não é você” como um dos pilares de pesquisa para seu mais recente trabalho o grupo propõe a questão da alteridade como possibilidade de continuação de convivência. “Protocolo Elefante” é o resultado que se vê desta experiência de luta e contradição, desintegração e mudança.

ARTISTAS RESIDENTES E COPRODUÇÃO

No período de três ou quatro anos, nos quais pretendemos afirmar este projeto curatorial, optamos por acompanhar as criações e atividades de três artistas: Wagner Schwartz, André Masseno e Marcelo Evelin, criadores inquietos, com trânsito entre linguagens e países, vozes dissonantes e afirmativas da legitimidade da arte como pensamento e articulação de discursos estéticos permeáveis e em profunda relação com os movimentos de transformação do mundo, das pessoas e dos comportamentos.

Em “Transobjeto”, Wagner retorna a referências como Lygia Clark e Helio Oiticica, passando ainda por Caetano Veloso, Lia Rodrigues, Carmen Miranda, Augusto de Campos e outros, que provocam o performer em relação frontal e ao mesmo tempo porosa com o público, em investigação permanente das relações entre corpo, presença, alteridade e espaço.

Masseno faz, nesta edição, a estreia de “Louca pelo Cheiro do Mar”, em coprodução com o Festival de Teatro de Curitiba. Um espetáculo solo com linguagem física multidisciplinar, alicerçada sobre releituras dos procedimentos éticos, políticos e estéticos da (contra)cultura brasileira dos anos 60/70.

Marcelo Evelin apresenta  uma ação articulada pelo CAMPO espaço de criação que idealizou e fundou em Terezina-PI. Trata-se de “Involuntários da Pátria” uma performance-manifesto, em espaços públicos, a partir do texto homônimo do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Em cena, orientada e dirigida por Sonia Sobral está a atriz transexual da cidade de Parnaíba, Piauí, Fernanda Silva.

ESPAÇO PÚBLICO

Ações que interferem na cidade com suas poéticas singulares e modos de entender e se entender na rua, estão presentes nesta edição, representadas por três coletivos: a tradição e invenção de Amir Haddad e seu combativo e sempre atuante grupo Tá na Rua, do Rio de Janeiro, que já completa 36 anos de atividades, o jovem coletivo Toda Deseo, de Belo Horizonte, que apresenta dois trabalhos e pela já mencionada ação do espaço de ação coletiva que é o CAMPO, do Piauí.

Amir nos mostra o encontro explosivo, poético e politico entre Sheakespeare e os Orixás, numa releitura ritual e livre de “A Tempestade”. O coletivo Toda Deseo, que trabalha investigando questões de gênero, legitimidade de fala, arte e política, chega pela primeira vez a Curitiba com dois importantes trabalhos: “Gaymada”, uma intervenção pública, entre a performance, o manifesto, o jogo e a celebração, ato estético-político que ocupa o espaço público e convoca a rua para a convivência das diferenças e “Nossa Senhora da (Luz)” espetáculo itinerante, com dramaturgia original, que conduz o público ao encontro de uma família em ruínas e em conflito com seus valores mais arraigados, uma crítica aguda e de viés popular à moral conservadora que emerge ciclicamente em diversos momentos da nossa história.

HUMOR E CRÍTICA SOCIAL

O ator Luis Miranda, traz sua comédia “7 Conto”, construindo tipos populares que revelam, através de um humor crítico, situações da vida do brasileiro. O olhar é sobre as questões sociopolíticas, afirmando a comédia popular como plataforma histórica para a crônica e a crítica social. Assim como na peça escrita e interpretada por Marcelo Médici “Cada um com Seus Pobrema”, vista por mais de 200 mil pessoas e que expõe ao público uma sequência de personagens típicos e presentes no imaginário brasileiro. Ambos, Médici e Miranda, dialogam com a tradição e a invenção na perspectiva do humor, criando dramaturgia inédita, brasileira e usando o riso para castigar costumes.

CURITIBA

Como na edição passada, damos continuidade a ações que possam atravessar toda a duração do festival e apontar as dimensões da potente arte produzida em Curitiba. Temos, então, o “Curitiba Mostra”, que reúne diversos atores, autores e outros artistas da cidade articulados em performances plurais pelos atores e diretores Nena Inoue e Gabriel Machado idealizadores do projeto.

INTERLOCUÇÕES

Além dos espetáculos, performances e intervenções, a mostra inclui uma série de ações, encontros, oficinas, filmes, rodas de conversa após as peças, encontro de crítica e curadoria e outras atividades de estimulo à formação do pensamento, às trocas entre artistas e entre artistas e público, buscando ampliar a experiência e o convívio.

Com esta programação temos o prazer de afirmar mais uma vez a legitimidade e o espaço para a arte em todas as suas formas como instancia fundamental na vida de todas as pessoas. Que sejam possíveis os encontros, que as diferenças convivam, que os teatros, ruas e os espaços da arte façam vibrar a cidade, que haja escuta e presença. Que tudo reverbere e construa memória. Que o outro, em toda a sua singularidade seja parâmetro.

. . .

Guilherme Weber e Marcio Abreu são, pelo segundo ano consecutivo, curadores do Festival de Teatro de Curitiba, cuja edição 2017 começa nesta terça, 28 de março. O texto acima representa a íntegra do que aparece, em versão editada, no programa do evento.

[foto: Divulgação / Festival de Curitiba]

Categorias: Blog. Tags: Festival de Curitiba, Guilherme Weber e Márcio Abreu.