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O fim da história ou “se simplesmente eu pudesse chegar ao lugar onde a história se cria!”

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Witold Gombrowicz é um dos mais celebrados escritores poloneses do século XX, com diversos trabalhos publicados pela Companhia das Letras aqui no Brasil. De 3 a 28 de novembro de 2015 no teatro La Colline, em Paris, um dos textos de Witold foi encenado pelo diretor (cineasta e escritor) Christophe Honoré.

A princípio temos “História”, uma peça de Witold que não tem a mesma notoriedade que Cosmos, Ferdydurke ou Pornografia, seus romances mais conhecidos. Em seguida temos “Fim da História”, o título da peça de Honoré. A dialética entre os dois títulos já aponta o caminho da criação: no original polonês, uma história incompleta e repleta de lacunas, na adaptação do francês, um desejo de conduzir essa história ao fim, mas através de um diálogo — para as questões de Witold, respostas que a História mesmo nos deu, nas décadas que sucederam “História”. Mas “Fim da História” é, também, o livro do economista e filósofo Francis Fukuyama, que entende como fim o momento em que um consenso universal sobre a democracia põe ponto final aos conflitos ideológicos, uma questão que Honoré traz para o hoje, numa nota feita durante os ensaios:

“Se estamos num presente no qual não podemos imaginar um mundo substancialmente diferente do nosso, no qual não temos nenhum indício de melhoras fundamentais da ordem vigente, talvez devamos levar em consideração a possibilidade da própria História estar chegando ao seu fim. O fim da História não significa o fim dos acontecimentos mundiais, mas o fim da evolução do pensamento humano em relação aos princípios fundamentais que governam nossa organização social e política.”

Pés nus, vida nua

Em cena, oito atores em uma enorme estação de trem. O jovem Witold e sua família, que devem esperar oito horas até o próximo comboio, uma longa madrugada familiar. Auto-retrato do autor, o protagonista tira os sapatos e passa a noite a flutuar pelo palco, se esquivando dos ataques do pai, da mãe, dos irmão e, em seguida, de Josef Stalin, Adolf Hitler, Benito Mussolini… Porque “História” trata, justamente, das idas e vindas entre uma existência familiar e outra global, ambas políticas e de semelhanças irrefutáveis.

De pés nus, Witold é o adolescente que recusa a forma definida. No préfacio de Constantin Jelenski ao livro da peça, os pés nus são o símbolo da imaturidade e de se estar desarmado, longe dos sapatos que encurralam, oprimem e criam armadura para o corpo. O embate acontece entre o maduro e o imaturo — o adulto que luta para formar o adolescente enquanto admira a plasticidade da juventude, essa que deixa de ser interessante uma vez já formatada.

Na transformação da irmã em Stalin, do tio em Hitler, do pai em Mussolini, Witold permanece como o adolescente, mas também é a jovem Polônia, que se vê dilacerada por fronteiras grosseiramente desenhadas pelas grandes potências mundiais. Honoré é hábil na construção dos grandes ditadores que se tornam cada vez mais próximos ao clássico de Chaplin, em uma paródia do mundo “adulto” e “racional”. No programa da peça, uma poesia do autor polonês sintetiza essa percepção: “Eu rejeito toda ordem, toda ideia / Não acredito em nenhuma abstração ou doutrina, / Não acredito na razão! Nem em Deus! / Nada de Deus, já chega! Me dêem o Homem! / Que ele seja, como eu, conturbado, incompleto, obscuro e confuso.”

O diretor inclui Agamben neste diálogo, através da biopolítica, na qual a vida nua é aquela destituída de cidadania, que permite uma suspensão total dos direitos humanos — como a praticada nos campos de extermínio do Nazismo e do Stalinismo. Entre a liberdade dos pés nus e a ameaça da vida nua, a juventude de Witold é testemunha ocular da História.

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Onde se cria a História

“Se ao menos eu pudesse chegar / Ao lugar onde a História se cria! / À política das potências! / Mas estou desarmado!” — Witold Gombrowicz, fragmento 13 de “História”

Christophe Honoré é conhecido internacionalmente por filmes como “A Bela Junie” e “Canções de amor”, sempre recheados de música pop e jovens atores célebres (como Lea Seydoux e Louis Garrel). Não à toa, a escolha do texto faz parte de uma constante pesquisa sobre a juventude, sobre dar à juventude um papel central. No texto de apresentação da peça, o diretor define sua geração como “protegida da História”, porque ela, a história, teria sempre acontecido em outro lugar e a geração seria apenas informada, ao invés de testemunha. Ele joga então a pergunta que guiará o processo: o que significa, hoje, “ter o seu lugar na História”?

Talvez a maior ironia seja o fato da peça estar em cartaz durante um período em que, na França, a História se faz claramente presente: Paris, 13 de novembro, 130 pessoas são brutalmente assassinadas por terroristas afiliados ao assim chamado Estado Islâmico, evidenciando a tênue linha que separa as decisões das nações da vida pessoal de cada um.

Como na vida de Witold, exilado na Argentina durante anos, guerra e maturidade andam juntos. E talvez para boa parte da juventude francesa a História que acontecia no Oriente Médio, com as políticas intervencionistas e imperialistas do governo francês, estavam longe do alcance. Agora, com o veículo do medo (o terror), a História se aproxima e a irresponsabilidade da esquerda (que responde com mais bombardeios desastrosos do território sírio) se reflete na ascensão da extrema-direita (que ecoa propostas à la Hitler, Stalin e Mussolini).

Em dado momento da peça, os personagens adquirem uma nova face: de ditadores, passam a ser Fukuyama, Derrida, Hegel, Marx e Kojeve. É nessa “roda viva” que vale retornar à questão de Honoré (e Fukuyama) sobre a possibilidade da História chegar ao fim: com todas as teorias e investidas da razão para criar modelos de um mundo melhor (ou simplesmente modelos de mundo), talvez tenhamos chegado à exaustão do pensamento como veículo para alterar a realidade.

O debate, aparentemente contido num macrocosmo político, nos envia de volta ao poema de Witold sobre perda da crença em Deus e na razão. E nesta paridade entre Deus e razão, que caracteriza tão bem o símbolo reducionista da guerra entre “ocidente” e “oriente”, a solução da juventude não é uma escolha, mas a abertura de uma terceira via. Gombrowicz, como Honoré, coloca no centro da peça uma outra vida nua, aquela que antecede mesmo a criação da Nação (natio, que vem do verbo “nascer”, e à qual pertence os nascidos), e que busca liberar-se da História que se impõe sobre a vida solitária de cada um. O termo “fim da história” poderia, sim, soar apocalíptico ou irresponsável. Mas, frente à obra de Witold e à adaptação de Honoré, está o desejo de reverter o discurso claro dos historiadores em um outro mais interessante, confuso, incompleto e, principalmente, imaturo.

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