TRADUZIR

MIT_SP – DIALÉTICA ATIVADA II

DIALÉTICA ATIVADA no MITsp
Conflito, harmonia e justaposição

Segundo post de Jonas Klabin. Para ver o primeiro, clique aqui.

Ubu e a Comissão da Verdade
William Kentridge
Handspring Puppet Company

Transitando entre um mundo lúdico e outro de terror, Ubu e a Comissão da Verdade pode ser descrito como um espetáculo infantil feito para adultos. O título nos aponta os dois grandes elementos desta dialética: o personagem Ubu, de Alfred Jarry na peça Ubu Roi, e depoimentos realizados por ocasião da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul.

Ubu é conhecido como a peça precursora dos movimentos modernistas, influenciando, em especial, o Teatro do Absurdo e o Surrealismo. Pura ficção, selvagem, bizarra e cômica. Estilizado e burlesco, Ubu Roi satiriza os malefícios do poder e da ganância. O protagonista se tornou personagem famoso, recriado em diversas peças, filmes e obras de arte, um anti-herói, gordo, feio, vulgar, ignorante, ganancioso, cruel, covarde, preguiçoso, egoísta, mentiroso etc. Sua personalidade se destaca pela forma infantil e mimada de agir, sua alienação e falta de diálogo com o mundo: um rei agindo por impulsos inteiramente egoístas.

Já a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul não é nada lúdica. Trata-se de uma audiência pública (tipo um tribunal) posta em prática após a abolição do apartheid. Por meio dela, vítimas deste regime de segregação racial puderam testemunhar e os culpados confessar e pedir anistia. Um processo doloroso, porém necessário para o desenvolvimento da democracia e da igualdade no país; um momento de catarse coletiva. Mas também foi polêmico por providenciar anistia aos criminosos, que deviam prestar as maiores provas possíveis contra si mesmos, detalhes para garantir que não fossem acusados futuramente de outros crimes. O público, que ouvia os milhares de horrores que muitos confessavam, famílias de vítimas destes criminosos, teriam que engolir a anistia concedida. Uma dialética entre desejos de reconciliação e retaliação nasce, reconhecendo a existência dos dois desejos, mesmo que contraditórios.

Ao reproduzir depoimentos da comissão no palco, ao lado de Ubu, nosso moderno anti-herói, o espetáculo aponta para a razão e o resultado de tanto terror e sofrimento. Os ataques infantis de Ubu libertam o desejo interno de reagir às confissões de tantas atrocidades, como também as suas ignorância e violência são as causas destas mesmas.

O espetáculo, como o Gólgota Picnic, também conta com o uso de mídias diferentes, com destaque para interpretação dos atores, os desenhos de animação (feitos manualmente por William Kentridge), material documentário original da violência do apartheid e teatro de bonecos. Ao contrário de Gólgota Picnic, Ubu e a Comissão da Verdade oferece uma narrativa entre as relações e uma possibilidade de harmonia, mesmo nos momentos mais agressivos e nas imagens mais violentas.

Os recursos são empregados de forma a neutralizar as reações ao conflito. O estilo burlesco e exagerado de interpretação empregado pelos atores é oposto ao estilo reservado e calculado da interpretação dos bonecos. Os bonecos (Jarry já tinha proposto que a montagem Ubu Roi fosse para o teatro de guignol) dão vida aos depoimentos das vítimas do apartheid na Comissão da Verdade. Os intérpretes que controlam os bonecos requerem um trabalho calculado e preciso. A interpretação dos bonecos depondo em zulu com tradução simultânea ao inglês (sem emoção) causa um efeito de distanciamento da violência do crime e da emoção do depoimento. Enquanto a interpretação histriônica de Ubu por um ator, aproxima o público, que ri junto com ele e, imediatamente, se torna seu cúmplice. Ainda contamos com outros recursos em dialética, como o desenho animado, distanciando atos de terror e brutalidade, tudo com o intuito de buscar sentidos para o momento presente.

Cineastas
Mariano Pensotti
Marea

Cineastas conta com uma dialética entre a realidade e a ficção através da relação do processo de criação artística e a vida pessoal do artista. Contando a história de quatro diretores durante o processo de criação de seus respectivos filmes, vemos como a realidade e a ficção se influenciam mutuamente, para que, ao final, filme e vida passem por uma transformação (necessária e natural) e deixem de ser o que pretendiam ser.

Mesmo não empregando recursos videográficos como em Gólgota Picnic e Ubu e a Comissão da Verdade, Cineastas tem o cinema e seu processo de criação na mesa de operação, marcando a presença e a influência desta da mídia no momento presente.

A mais visível divisão dialética vai para a diagramação das performances dentro de um cenário dividido em dois andares, dois quadros (ou dois frames). A dinâmica da ação que ocorre nos dois quadros é coreografada para se relacionar dentro de uma moldura maior que enquadra os dois. Exibindo o funcionamento dessa “maquina de projeção”, um mecanismo que não para: enquanto as cenas ocorrem em um andar, vemos a preparação da próxima cena no outro andar, incluindo contra-regragem e preparação dos atores para suas cenas. Outro elemento fundamental é a narrativa em terceira pessoa de um dos atores ou atrizes que se revezam ao microfone (como num voice-over, como a de um documentário sobre comportamento humano, porém presentes na cena, mesmo que naquele momento sua presença não seja reconhecida pelos personagens). A dialética das ações concomitantes nos dois espaços cenográficos e o formato de narrativa em terceira pessoa, havendo o elenco encenando a história narrada por um ator também presente no mesmo espaço, coreografa um balé de ações, expondo como tudo está e pode ser relacionado a tudo que está presente, não só no palco (e nos filmes) mas na vida (e na dos artistas). Que a ficção é real no sentido que ela tem o poder de causar efeitos na vida. E vice-versa.

As peças em dialética: o MITsp

A experiência de acompanhar o MITsp, definitivamente um marco de 2014, coloca os espetáculos da programação um ao lado do outro e, claro, abre espaço para que haja um diálogo entre eles. Na própria fila de um dos espetáculos, passei uma boa meia hora conversando com um estranho, colega e cúmplice, dos diversos espetáculos. Como um é diferente do outro e a experiência de cada um, tentando juntos fazer maior sentido, tentando juntar mais pontos. Pegamos o programa e a revista de cartografias da mostra, dando início a uma pesquisa. Não sei, começamos falando de um espetáculo, pulamos para outro, e outro, de repente voltamos ao primeiro e, finalmente, terminamos foi falando da vida mesmo.

Categorias: Blog. Tags: Alfred Jarry, carrossel, Handspring Puppet Company, Mariano Pensotti, Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e William Kentridge.