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Avignon contra os tempos de crise pt. 3

Leia a parte 1 aqui.
E a parte 2 aqui.

La Jeune Fille, le Moulin et le Diable

Dirigido pelo curador do festival deste ano, o francês Olivier Py, e baseado num conto dos irmãos Grimm, “La Jeune Fille, le Moulin et le Diable” foi o segundo infantil que assisti nesta maratona teatral. Muito bonito e engenhoso também, mas o que o infantil de Matthieu Roy tinha de tecnológico, esse tem de artesanal.

Mantendo a narrativa do conto original, o espetáculo é simples porém mágico nos seus artifícios, que são expostos ao público infantil. Populado por personagens caricatos e tipificados, tais como a jovem menina pura, o diabo, o princípe encantado, etc. Remetendo a Commedia Dell’Arte, com cenografia linda que nos lembra aquela de uma trupe viajante, com direito a tambores, acordeão e um instrumento que não sei o nome, que acompanham canções que descrevem a situação da menina protagonista.

Em resumo, o conto relata como o pai inocentemente faz um pacto com o diabo sem se dar conta que ele comprometeu sua filha e terá ele mesmo que cortar as mãos da menina para dar ao diabo. A filha em seguida parte numa jornada repleta de obstáculos/provas na qual ao final recupera suas mãos. Esses obstáculo abordam temas que as crianças, o público, indagam, sobre morte, amor, guerra e família. Temas que podem ser pesados mas que através de artíficios teatrais simples, ganham uma leveza e inocência, perfeitas para um conto infantil

 

Die Ehe Der Maria Braun

O último espetáculo que assisti do circuito oficial do Festival de Avignon, “Die Ehe Der Maria Braun”, dirigido pelo alemão Thomas Ostermeier e baseado no filme homônimo de Rainer Werner Fassbinder, é simplesmente inesquecível e o terceiro grande destaque dentre os espetáculos que assisti neste festival.

São cinco atores sensacionais interpretando um total de 28 personagens. Em paralelo, encontramos 28 poltronas distribuidas pelo palco, o elemento mais presente da cenografia. Detalhes de figurino são usados para ajudar a distinguir os diversos personagens e em certos momentos usam a projeção para situar eventos, principalmente os históricos, no desenvolver trama.

A história começa durante a Segunda Guerra Mundial, quando Maria se casa com Hermann durante um bombardeio. Hermann, um soldado alemão, segue para a frente no dia seguinte. Daí por diante relatam os sacrifícios que Maria Braun fez para sobreviver enquanto aguarda o retorno do seu marido que, a cada momento que parece que poderão se reunir, alguma fatalidade impede que os dois permaneçam juntos. A primeira foi aguerra que o levou para a frente, a segunda foi a fala notícia que Hermann morreu na guerra. A terceira, ao retornar Hermann a encontra nos braços de um militar americano, que Maria mata acidentalmente e ele decide assumir a culpa e vai para prisão, onde permanece durante anos. Porém, mais do que sobreviver enquanto espera o retorno de seu marido, Maria Braun excedeu, principalmente através do amor de outros homens (porém se mantendo fiel ao amor que dizia ter pelo seu marido), se tornando um mulher rica e poderosa. Claro não sem seus grandes sacrifícios, apresentando uma mulher vítima das regras sociais e econômicas, rodeada pelos homens e isolada em sua feminice.

Em meio ao espetáculo, Ostermeier ainda conseguiu incluir num discurso de Maria Braun, um forte protesto contra os cortes financeiros na cultura francesa que tirou suspiros e aplausos em cena aberta do plateia inteira. Foi um tapa na cara inesperado que, para este espectador, deixou um sorriso. Genial.

 

La Derniere Balade de Buster Keaton

O único espetáculo que assisti no circuito OFF do Festival de Avignon, “La Derniere Balade de Buster Keaton” é um teatro de gestos, infantil, circense e de marionetes realizado pela companhia franco-brasileira, Les Trois Clés. Com direção dos integrantes Eros P. Galvão e Alejandro Nuñez Flores, inspirado num texto de Federico Garcia Lorca, “El Paseo de Buster Keaton”, e também no único filme de Samuel Beckett, “Film”, protagonizado por Buster Keaton em 1965, com dramaturgia e música de Marcus Borja, este é um espetáculo surrealista, uma viagem na memória de Keaton, acompanhado de sua sombra e uma mala cheia de lembranças.

É um espetáculo denso de referências, especialmente a Beckett e Lorca, porém que nada impede desfrutá-lo caso não os reconheça, já que é voltado para um público infantil. Outra grande referências é, claro, o cinema mudo de Keaton, que aqui volta a vida num espetáculo mudo, baseado nos gestos para sua comunicação.

Os trabalhos de sombra, marionette, acrobacia e musical são destaque, criando uma obra poética, delicada, engraçada e viajante. E que enche os olhos de imagens lindas.

 

Die Zauberflöte

A 20 minutos de trem ou uma hora de carro de Avignon, fica o Festival de Aix-en-Provence, que este ano recebeu o prêmio de melhor festival de ópera do International Opera Awards em Londres. Fui conferir e não me decepcionei.

A nova montagem da “Flauta Mágica” de Wolfgang Amadeus Mozart, dirigida por Simon McBurney do Complicite de Londres, é disparado o melhor espetáculo que assisti ao longo desta maratona.

Esta é uma mega-produção com equipe, orquestra e elenco gigantes, todos talentosíssimos, trazendo a última ópera de Mozart à vida dentro de um cenário de cair o queixo. O espetáculo conta com um trabalho de projeção engenhoso, novamente implementando a tela rosco transluscente (como no espetáculo de Murgia) para atingir soluções cenográficas que criam ilusões de ótica, fazendo com que os atores possam lutar com uma cobra gigante e flutuar dentro d’água; imagens lindas e cinematográficas, de encher os olhos. A peça central do cenário é uma plataforma gigante flutuante que permite os atores passarem por baixo, por cima, se pendurar dela, empurrá-la para que um canto encoste no chão e o outro atinja as alturas da boca de cena. A plataforma desce para descansar no chão, paira na altura da cintura e se transforma numa grande mesa para um conselho… Outro momento plástico de extrema beleza são os milhares de pássaros-partituras que invadem o palco.

Em um canto temos uma mesa com uma câmera onde um artista escreve, desenha e coloca objetos que são projetados no fundo do palco ou na tela à frente. No outro canto encontramos outra artista dentro de uma caixa acústica, cheia de diversos objetos com os quais ela reproduz efeitos sonoros, como no cinema, para acompanhar a ação do palco.

O palco, a orquestra e a plateia são exploradas pelo elenco, que se divertem e fazem graça com público ao correrem por entre as fileiras e flertarem com membros da orquestra.

Tiveram diversos momentos de aplausos em cena aberta (e olha que esse público é rigoroso e conhecedor de óperas) especialmente no segundo ato, começando com o solo da Rainha da Noite. seguido por quase todos os atores principais e havendo outro grande destaque para o interprete de Papageno, que roubou diversas cenas com momentos hilários.

Ao final do espetáculo, meus olhos encheram de água com a beleza da obra completa, sob urros de “Bravo!” da plateia, que se manteve aplaudindo por cerca de quinze minutos. Virando para os colegas ao lado (pessoas que não conhecia) todos sorrindo cúmplices um para o outro, de felicidade e satisfação. Uma experiência sublime e única, que levaremos conosco para o resto da vida.

 

Trauernacht

O outro espetáculo que assisti em Aix-en-Provence foi “Trauernacht” (Noite de Luto). Composto por Johann Sebastian Bach, é uma cantata litúrgica que a diretora Katie Mitchell teatralizou, transformando-a numa espécie de ópera.

O espetáculo conta com cinco cantores/atores e outros onze músicos na orquestra, mais o regente. O cenário é a sala de jantar. No elenco, quatro atores interpretam os filhos que se reunem à mesa na noite de luto pelo falecido pai, interpretado pelo quinto ator.

As composições de Bach fazem o texto do espetáculo, que fala sobre a morte, a condição humana, o tempo, o medo, a esperança, o sofrimento…

A ação é o destaque diferencial neste espetáculo. Muito simples, a família se reune para comer. Eles põem a mesa, se servem, comem, bebem (enquanto cantam!) e ao terminarem limpam a mesa. Tudo isso ao longo de aproximadamente uma hora e meia,  numa espécie de atuação em camêra lenta. Todos os movimentos são extremamente controlados, vagarosos e intensos. Como se tudo estivesse submerso em água e fosse proibido executar movimentos bruscos que pudessem causar ondas, agitando a calmaria do ambiente. Sentimos um ambiente pesado que não pode ser agitado ou será dispersado, elevando a presença do pai que se mantém ao fundo da cena.

O clima é tão intenso que neste espetáculo a plateia mal se mexia, silencio e imobilidade total, mesmo entre os números musicais. Entendia-se que o silêncio daquele descanso era sagrado e qualquer ruído dispersaria a energia que mantém a presença daquele espírito no palco. Realmente uma experiência sobrenatural.

 

Roberto Bolle & Friends

O último espetáculo que assisti durante esta viagem foi em Roma foi com muita sorte e pura coincidência de estar no lugar certo na hora certa. Tive a oportunidade de ver uma apresentação única do aclamado Roberto Bolle, que reuniu alguns de seus colegas bailarinos e coreógrafos preferidos de diversas companhias ao redor do mundo, para dançar um repertório que eles mesmos selecionaram. O mais espetacular é que eles se apresentaram ao ar livre em meio às ruinas das Termas de Caracalla da Roma Antiga.

Logo que pousei em Roma fiz amizade com o taxista que me levou ao hotel e que por acaso amava teatro, ópera e ballet. Foi ele quem me informou que Roberto Bolle se apresentaria no dia seguinte. Entusiasmado, fui correndo comprar um ingresso online e por telefone, mas já estavam esgotados há tempo. Decidi esperar até o dia seguinte para passar na bilheteria e tentar a sorte novamente. E deu certo! Consegui o último ingresso. Me senti abençoado.

A proposta do espetáculo foi inspirada numa peça do Nureyev e outra do Pavarotti, (“Nuyerev & Friends” e “Pavarotti & Friends”) que também reuniram colegas para montar uma coleção de suas obras prediletas, com a pura vontade de se divertir fazendo o que ama. Realmente, o que vemos no palco são nove bailarinos excelentes se divertindo horrores e roubando aplausos do público a cada salto, volta, respiração. Todos encantados, no palco e fora dele.

O repertório foi composto dos seguintes números: pas-de-deux do primeiro ato do “Romeo e Giulietta”, adagio da Rosa do “La Bella Addormentata”, um medley de Frank Sinatra, pas-de-trois do segundo ato do “Le Corsaire”, “Mono Lisa”, “Passage”, “Apothéose”, “Le Bourgeois”, pas-de-deux “Thaïs”, pas-de-deux para Tchaikovsky e “Prototype”. Todos números lindos, alguns clássicos, outros contemporâneos, incluindo dois solos do Roberto Bolle interagindo consigo mesmo em projeção de video.

Apesar de todos os bailarinos serem incríveis, teve um baixinho, o russo Daniil Simkin, filho dos famosos bailarinos Dmitrij Simkin e Olga Aleksandrova, que tirou o fôlego da plateia e roubou aplausos com seus saltos e piruetas que, para mim, até então, pareciam humanamente impossíveis. Para falar a verdade, tudo sobre aquela noite me parecia impossível. Mas eu estava lá. Acredite quem quiser.

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