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A FRONTEIRA DESLIZA: WALY SALOMÃO, JANINE ANTONI E FELIPE HIRSCH

“A fronteira tem uma maleabilidade, a fronteira desliza, a fronteira tem uma fluidez. Não é coagulada, é como a água do Rio Negro, fluindo…”

Estas são as palavras de Waly Salomão, retiradas do documentário Viagens na fronteira – São Gabriel da Cachoeira, San Felipe, de Carlos Nader, diretor que acaba de lançar em DVD Pan-Cinema Permanente, em homenagem ao poeta. Na opinião de Waly, encontramos um pensamento singular a respeito da fronteira, tida como algo transitório e fluido e não como um obstáculo demarcatório absoluto que divide territórios. E não estamos falando aqui apenas de geopolítica, mas também de subjetividade e – fundamentalmente – de criatividade.
Neste sentido, ao pensarmos nas fronteiras que separam o Teatro e a Literatura, o Cinema e as Artes Visuais, se estamos com Waly (e motivos não faltam para embarcamos neste barco), devemos perceber a fluidez entre os gêneros artísticos, de modo que um deslize no outro e encontre na maleabilidade a sua razão de ser.

Inspirados em Waly, iremos apresentar aqui duas obras, uma video-instalação e um espetáculo teatral, que nos parecem deslizar nas fronteiras entre as artes, tal como sugere o poeta.

Exposta no Museu Inhotim, em Belo Horizonte, a video-instalação Swoon (1997), da artista Janine Antoni, nascida em Bahamas, é dividida em três ambientes. Ao entrarmos na primeira sala vazia, passamos a ouvir a forte respiração de uma mulher, que nos remete diretamente a um corpo em pleno exercício físico. De um lado uma parede, de outro um tapume enorme de madeira cujas laterais, fechadas por cortinas, nos conduzem ao segundo espaço da instalação.


Quando entramos neste segundo espaço, entramos, na verdade, em um palco onde um casal de bailarinos interpreta a parte final de Lago dos Cisnes de Tchaikovsky (1877), um pas de deux em que os personagens do príncipe Siegfried e da donzela Odette se despedem. A impressão de que estamos sobre o tablado teatral, no centro deste balé dramático, resulta da disposição de uma enorme tela de projeção que divide o espaço, na qual vemos os bailarinos dançarem. A grandiosa projeção é refletida por um espelho de mesma escala localizado no lado oposto do espaço. Vemos apenas as pernas dos bailarinos: uma cortina francesa, pendendo do teto, cobre grande parte da tela, de modo que, neste segundo espaço, estamos no palco mas não vemos os dançarinos. Porém, se nos colocamos de costas para a projeção e diante do espelho, temos a cortina atrás de nós, escondendo grande parte da imagem e revelando outra. Aqui, o espaço é, de um lado, ampliado pela projeção e, de outro, duplicado pelo espelho. Aqui, o palco possui frontalidades móveis, sem haver platéia. Neste sentido, o palco, local por excelência do acontecimento cênico, é heterogêneo, havendo um desdobramento espacial que projeta espaços adjacentes distintos daqueles que percorremos.


No terceiro espaço, no qual podemos ver a tela de projeção por inteiro, observamos todas as movimentações corporais dos bailarinos, observação essa aguçada pela decisão de Antoni em retirar, em alguns momentos, a música da apresentação. Com a ausência do elemento sonoro, passamos a ouvir os passos, as respirações, o barulho das movimentações e deslocamentos efetuados pelos dançarinos. Não só isso: passamos a observar o nosso próprio deslocamento pelo espaço, havendo aí uma ênfase nas trajetórias e gestos que utilizamos neste palco.
A fronteira na qual desliza Swoon é aquela da apropriação da cena efetuada por Antoni em sua vídeo-instalação. Aqui, o vídeo e o espelho são os dispositivos óticos cuja articulação elimina, por um lado, a platéia e, por outro, institui um palco heterogêneo composto por diversas dimensões.  O espectador entra na cena sem bastidores e passa a ser parte integrante do pas de deux. A experiência deste palco faz com que oscilemos (patinemos, como cisnes patinam sobre o lago) entre o peso dramático da ficção e os detalhes físicos da apresentação.

A segunda obra que iremos apresentar aqui é o espetáculo Não sobre o amor, da Sutil Cia de Teatro, dirigida por Felipe Hirsch que foi apresentada recentemente no Festival de Curitiba.

Trata-se da encenação de um amor epistolar entre 2 personagens históricos: o formalista russo Victor Shklovsky e Esla Triolet. Esla, na peça, é Alya, interpretada por Arieta Correa, a mulher por quem o escritor de Leonardo Medeiros é absolutamente apaixonado e a quem dedica grande parte de seu tempo.

Se, em um primeiro momento, o que vemos é uma relação desencontrada de amor, conforme prosseguimos na experiência teatral, notamos que, na realidade, o espetáculo tem como assunto principal o exílio.
Shklosvsky e Triolet, ambos russos, saem de São Petesburgo e vão morar em Berlim.  Alya, no entanto, não é apenas a mulher que não corresponde ao amor do escritor. Alya, na verdade, é a impossibilidade de se voltar para casa. Vejamos, por exemplo, a última fala de Medeiros: “Eu inventei o amor e a mulher para escrever sobre desentendimento, sobre uma terra estrangeira, pessoas estrangeiras. Um estrangeiro é aquele cujo amor está em outro lugar”.
Na encenação teatral, o estrangeirismo surge pela cenografia, pelo vídeo, e pela interpretação de Arieta.
Em primeiro lugar, a cenografia de Daniela Thomas institui um espaço cênico em que tudo está fora de lugar: luminária, cama, mesa, escrivaninha, janela e porta são deslocadas do chão e espalham-se por todas as dimensões da caixa teatral. Desse modo, a cada cena, o diretor brinca com as vistas laterais, superiores e frontais, de maneira que possamos passar pela experiência visual de exílio do protagonista.
Neste espetáculo, uma experiência limítrofe entre a literatura, o cinema e o teatro,  os efeitos promovidos tanto pela luz e pela projeção tratam de sublinhar o exílio e o deslocamento do protagonista. Aqui, o apuro visual é de tal ordem que, em determinados momentos, o quarto é duplicado sem que possamos perceber, de fato, os limites entre o cenário real e aquele projetado. O vídeo se mostra como um elemento estruturante fundamental do espetáculo na medida em que sublinha a personagem Alya tanto como objeto amado inatingível quanto como a materialização do estrangeirismo do escritor. Na maioria das vezes em que a projeção surge, ela exibe Alya em diferentes escalas e perspectivas: nos momentos iniciais, o rosto de Arieta preenche todo o espaço, em outros instantes, há uma duplicação de sua presença, há ainda rotações e translações da cena, que fazem com que o escritor seja tomado pela presença da amada, sem no entanto, poder desfrutá-la. Evidentemente que o vídeo não é o único elemento responsável por este deslocamento. Na realidade, a conjugação entre vídeo e interpretação tratam de instituir uma atmosfera de puro desencontro. A Alya de Arieta surge distanciada, um pouco apática, uma aparição que perambula por diversos cantos do quarto.

É significativo ainda que todo o espetáculo se baseie na obra de um formalista russo que conceituou, antes de Bertold Brecht, o efeito de estranhamento ou “desfamiliarização” na literatura. Afirmou Shklosvsky em 1917: “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos […] a arte é um meio de experimentar o devir do objeto […] O objetivo da imagem representa a transferência de um objeto de sua percepção habitual para uma esfera de nova percepção

Na citação de Shklosvsky, a arte é o local onde os objetos são exilados de suas funcionalidades. Uma transgressão das fronteiras na qual pode-se perceber uma possível consonância com a vida e a obra de Waly Salomão.

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